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sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Melancolia

"Melancolia" é uma criação estranha e bela do dinamarquês Lars von Trier. Ele tem uma legião de seguidores (e detratores) do seu cinema provocador e irregular, e gosta de ousar brincando com gêneros (o musical "Dançando no Escuro", o terror de "Anticristo") ou linguagens (o teatro filmado de "Dogville" e "Manderlay"). Com "Melancolia" ele cria uma obra inusitada, um "disaster movie psicológico". Algo como uma mistura entre o drama "Interiores", de Woody Allen e "Impacto Profundo", de Mimi Leder.

O filme é dividido em duas partes, "Justine" e "Claire", que são duas irmãs; a primeira parte se passa na festa de casamento de Justine (Kirsten Dunst) e Michael (Alexander Skarsgård). A recepção ocorre em um casarão afastado da civilização, em meio a uma floresta e um campo de golfe. Justine é um poço de contradições. Em um momento aparenta estar feliz com seu casamento e no momento seguinte entra em um estado de profunda depressão. A mãe (Charlotte Rampling) não acredita em casamentos e destila seu veneno sobre a filha. O pai (John Hurt) é um piadista que está permanentemente bêbado e alienado aos humores da filha. A irmã Claire (Charlotte Gainsbourg) mantém uma distância estudada do caos à sua volta, que ela tenta administrar organizando a festa de casamento, a irmã instável e o marido controlador, John (Kiefer Sutherland), que não cansa de dizer a fortuna que tudo aquilo está lhe custando. Nesta primeira parte, "Melancolia" se refere ao estado depressivo de Justine. É um "disaster movie" familiar, já que o casamento está em rota de colisão desde o primeiro minuto de projeção.

A segunda parte trata de Claire, que parece ser o lado mais centrado da família, mas as aparências enganam. Charlotte Gainsbourg, que já trabalhou com Trier em "Anticristo", é uma atriz fascinante; seu corpo pequeno e rosto quase infantil passam uma sensação de fragilidade que contrasta com a beleza sensual de Kirsten Dunst. A trama se passa na mesma casa da festa, talvez meses depois; Justine está no fundo do poço, tendo que ser cuidada como uma inválida pela irmã Claire e pelo cunhado John. Há uma quarta figura neste grupo fechado, Leo (Cameron Spurr), o filho pequeno de John e Claire. Chega a ser surpreendente o modo terno com que Trier apresenta o garoto, que é o próprio retrato na inocência. Na casa isolada estão todos pensando na mesma coisa: a aproximação de um planeta chamado Melancolia, que surgiu no Sistema Solar e, dizem os cientistas, vai passar muito próximo da Terra, sem causar danos. O que não impede de aterrorizar Claire, que acredita nos sensacionalistas da internet que dizem que Melancolia vai colidir com a Terra.

Trier se utiliza desta trama com moldes de ficção-científica para fazer um filme psicológico sobre as relações humanas e discutir nosso lugar no Universo. John (em boa interpretação de Sutherland) é o típico "homem renascentista", que tem fé na ciência e um entusiasmo quase infantil (que divide com o filho pequeno) com relação à Astronomia. Ele está constantemente acalmando Claire e agindo como se algo tão bonito e fascinante como Melancolia fosse incapaz de causar mal. Prático, ele compra mantimentos extras e iluminadores à gás para o casarão e passa horas com o filho observando o planeta por um telescópio no jardim. Há uma cena incrivelmente bela quando Melancolia surge no horizonte, como uma Lua gigantesca e azul, iluminando a noite com uma falsa alvorada. Mas será que o lindo planeta é mesmo inofensivo? Quanto mais ele se aproxima da Terra e dá sinais de que vai realmente colidir com o planeta, os personagens reagem de forma diferente. Justine, paradoxalmente, é a que enfrenta o destino de modo mais calmo, embora fatalista. "A Terra é má", diz ela. "Ninguém vai sentir nossa falta". Já Claire entra em desespero, preocupada com o destino do filho pequeno. John, o calmo homem da ciência, reage da forma mais egoísta de todos.

Tudo isso é filmado de forma extremamente bela. O início do filme é formado por vários planos em câmera lenta que mostram, de forma metafórica, tudo o que vai se seguir. Há uma cena de nudez de Kirsten Dunst, deitada na relva, observando Melancolia, que é como uma pintura. Todas estas cenas são acompanhadas do melancólico (com o perdão da palavra) tema de Tristão e Isolda composto por Richard Wagner. Pena que Lars von Trier, em uma atitude que lembra certas ações da personagem Justine, se boicotou durante o último Festival de Cannes, onde "Melancolia" foi exibido. Durante uma entrevista coletiva, Trier começou a divagar e, surpreendendo a todos, disse ser nazista e que "entendia Hitler". Ele foi expulso do festival (que premiou "A Árvore da Vida") e causou mal estar geral; há quem acredite que tenha sido um golpe de marketing. Independente disso, "Melancolia" é um filme bastante singular, de beleza ímpar.


terça-feira, 18 de novembro de 2008

Romance

Guel Arraes e Jorge Furtado são, possivelmente, os dois melhores roteiristas brasileiros hoje. Os dois tem a característica de saber misturar o popular com o erudito de forma inteligente e engraçada. Arraes vem de programas como a adaptação de "As Comédias da Vida Privada" para a televisão, do humorístico "TV Pirata" e da minissérie (também lançada como filme) "O Auto da Compadecida". Furtado é o roteirista/diretor do curta brasileiro mais premiado do cinema, "Ilha das Flores", e de longas como "O Homem que Copiava" e "Saneamento Básico". Agora os dois se juntaram para escrever o roteiro de "Romance", em que exploram a lenda romântica de "Tristão e Isolda" e a transferem para os dias atuais. O filme é dirigido por Guel Arraes.

Pedro (Wagner Moura) é um diretor de teatro apaixonado pelo seu ofício que está montando uma versão de Tristão e Isolda. Ele faz um teste com Ana (Letícia Sabatella), que ganha não só o papel como o coração de Pedro. Os dois se apaixonam no processo de ensaio, trocando diálogos que misturam suas frases com as dos personagens que estão interpretando, em um jogo metalinguistico típico dos roteiros de Jorge Furtado. Também típicas dele são as referências externas que, como hyperlinks, aparecem na tela na forma de animações. A bela fotografia (de Adriano Goldman) compõe planos atísticos que se mesclam citando quadros famosos, como "O Beijo", de Gustav Klimt, ou figuras medievais. Ana e Pedro se entregam a um amor ao mesmo tempo tradicional, cheio de romantismo e poesia, e físico. Letícia Sabatella, belíssima, está amadurecida e mais mulher em várias cenas de nudez com Wagner Moura. Tudo parce correr bem mas, como os próprios personagens comentam, no romance ocidental não há paixão sem dor ou sofrimento, e logo algo tem que dar errado. Os problemas começam quando um famoso produtor da televisão (José Wilker) vai assistir à peça e contrata Ana para fazer uma novela no Rio de Janeiro. Sua fama começa a atrair muitos espectadores para a peça, o que seria bom mas, ao mesmo tempo, causa ciúmes e sofrimento em Pedro, e os dois se separam.

Três anos depois, Ana é uma famosa artista da televisão e Pedro ainda é dedicado ao teatro. Os dois voltam a trabalhar juntos em uma adaptação de Tristão e Isolda para a TV, transposta para o nordeste brasileiro do século passado. É interessante ver como Arraes e Furtado brincam com os temas do sofrimento por amor e do triângulo amoroso presentes em Tristão e Isolda, que teria influenciado grandes partes das histórias de amor criadas desde o século XII (como "Romeu e Julieta", de Shakespeare, ou as lendas do Rei Arthur, traído por Guinevere e Lancelot). O filme é rico em situações e metalinguagens que misturam o teatro, a televisão e o próprio cinema. Há também uma ótima apropriação por parte do roteiro de outra peça famosa, "Cyrano de Bergerac", escrita por Edmond Rostand no final do século XIX. Na peça, Cyrano, um guerreiro feio e com um grande nariz, escrevia cartas apaixonadas para a bela Roxane. Só que, incapaz de declarar seu amor, Cyrano se escondia por trás do jovem Cristian, que acabava colhendo os frutos deste amor.

Em "Romance", a trama de Cyrano de Bergerac é resgatada pelo fato de que Pedro, ao escrever o roteiro de "Tristão e Isolda" para sua amada Ana, acaba vendo ela se apaixonar pelo ator que está interpretando Tristão, o sertanejo José de Arimatéia (Vladimir Brichta). Há mais sobre este personagem, mas prefiro não revelar aqui. O elenco ainda conta com Andréa Beltrão, muito bem como uma produtora que só pensa em audiência e sucesso, e com a participação especial de Marco Nanini, fazendo um ator cheio de manias e exigências. Como sugestão de referências, sugiro a versão de 1990 de "Cyrano de Bergerac", dirigida por Jean-Paul Rappeneau, com o grande Gérard Depardieu no papel principal. A lenda de Tristão e Isolda teve uma versão cinematográfica fraquinha realizada em 2006 por Kevin Reynolds. Mas o grande mestre do suspense Alfred Hitchcock se inspirou no mito para criar sua obra prima, o grande "Um Corpo que Cai" (Vertigo, 1958), em que James Stewart e Kim Novak vivem uma versão moderna e tortuosa do romance tradicional. Reparem como a trilha de Bernard Herrmman é fortemente baseada na ópera "Tristão e Isolda", de Richard Wagner.

Romance é um filme que fica para ser saboreado aos poucos, e ter suas dezenas de referências reconhecidas e aproveitadas. Belo trabalho de Guel Arraes, Jorge Furtado e elenco.


trailer de Romance:


Vertigo, de Alfred Hitchcock: