domingo, 5 de agosto de 2012

Histórias que só existem quando lembradas

Da escuridão surge o rosto de uma senhora . Passo a passo, ela anda em direção ao primeiro plano, e a luz do lampião revela uma cumbuca de cerâmica. Ela é Madalena (Sônia Guedes) e, como todas as noites, ela prepara a massa do pão que vai levar à venda do Sr. Antônio (Luiz Serra). Ela implica com o modo dele preparar o café, enquanto que ele implica com o fato dela colocar os pães na prateleira da vendinha. Como todos os dias, eles tomam o café, vão à missa e, mais tarde, almoçam junto com os outros moradores do pequeno povoado de Jotuomba. No dia seguinte, estes pequenos rituais se repetem, rigorosamente iguais. Todos na vila têm idade avançada, não há luz elétrica e nenhum trem passa pelos trilhos. O cemitério está trancado e há uma placa com um aviso aparentemente fora de lugar: "Proibida a entrada".

"Histórias que só existem quando lembradas" é um filme meditativo, lento e curioso. Formalmente, é tão antigo e preso a regras como os habitantes do lugar. A decupagem é clássica e a câmera permanece fixa, sem panorâmicas, travellings ou zoom. A diretora Julia Murat estabelece a rotina na repetição do movimento dos atores e nos diálogos, mas ilustra a mudança dos dias deslocando a câmera para o outro lado do eixo em que a cena foi filmada da primeira vez. O primeiro movimento de câmera, sutil, se dá com a entrada no filme de Rita (Lisa Fávero), uma garota de uns 20 anos que aparece misteriosamente na vila. É a primeira  jovem a ser vista na região em décadas e, aos poucos, ela vai mudando a rotina dos habitantes locais. Na mochila ela traz tanto uma câmera fotográfica digital, que destoa do mundo mecânico e analógico à sua volta, quanto câmeras caseiras de "pin-hole", técnica artesanal de fotografia que usa apenas papel fotográfico colocado dentro de uma lata, tendo um pequeno orifício como lente. É com estas câmeras que Rita começa a fazer registros da vila e seus moradores; apropriadamente, eles parecem fantasmas quando as fotos são reveladas (também de forma artesanal) por Rita.

O filme é uma co-produção brasileira, argentina e francesa. A equipe de produção é mínima e é daquele tipo de obra em que a lista de agradecimentos, nos créditos finais, é maior que a parte técnica. É um corpo estranho quando comparado à filmografia nacional recente, formada em grande parte por comédias destinadas ao público jovem e televisivo. Há uma lentidão estudada e proposital e o roteiro, alegórico, pode gerar várias interpretações. Interessante o fato de que a fotografia seja usada como instrumento tanto de memória quanto de mudança dos habitantes de Jotuomba. A direção de fotografia de Lucio Bonelli é muito boa, explorando principalmente os claros e escuros provocados pela iluminação dos lampiões. Pena que os diálogos, por vezes, sejam redundantes. O espectador (e Rita) já tem a informação, por exemplo, de que o cemitério está trancado; também já viu uma imagem que mostra uma lista dos habitantes que foram lá enterrados, sendo que o último data de 1976. Ainda assim, há uma cena em que Rita pergunta para Antônio o porquê deles não anotarem mais o nome dos mortos. O filme já tinha, sutilmente, mostrado que ninguém morria em Jotuomba há décadas, e não precisava que isso fosse reforçado em um diálogo.

De qualquer forma, é um filme bastante sensível sobre a vida e a morte. Há uma cena belíssima, infelizmente já revelada tanto no trailer quanto no cartaz do filme, em que Madalena (interpretação ótima de Sônia Guedes) finalmente decide posar para Rita. A imagem fotográfica, simulacro da realidade, memória em forma de imagem, se torna também o meio pelo qual a diretora mostra o cemitério sendo finalmente reaberto, com todas as consequências que isso traz. Belo filme. Visto no Topázio Cinemas, em Campinas.

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