terça-feira, 28 de outubro de 2014

Relatos Selvagens

"Relatos Selvagens" é composto por seis episódios cheios de ironia e humor negro. O filme é escrito e dirigido por Damián Szifrón e é uma co-produção entre a Argentina e a Espanha (representada por ninguém menos que Pedro e Agustín Almodóvar). O humor de Szifrón é afiado mesmo nas situações mais absurdas.

A primeira história se passa em um avião em que, misteriosamente, todos os ocupantes parecem ter alguma relação com um homem chamado Pasternak. O final é engraçadíssimo.

No segundo episódio, um homem pára em um pequeno restaurante de beira de estrada durante um temporal. A garçonete (Julieta Zylberberg) o reconhece; foi ele quem causou a morte do pai dela e assediou a mãe. Por anos ela sempre quis estar de frente com ele para lhe dizer poucas e boas. Mas a cozinheira (Rita Corteze) tem uma sugestão mais assustadora (e tentadora).

O terceiro episódio é, talvez, o melhor do filme. Ele mostra o que acontece quando dois homens estão atrás do volante de um carro. Leonardo Sbaraglia está dirigindo um carro de luxo em uma estrada e tenta passar outro carro, velho e sujo, dirigido por Walter Donado. Os dois se "estranham", Leonardo baixa o vidro e ofende o dono do outro carro. Alguns quilômetros à frente, porém, o carro de luxo é obrigado a parar na beira da estrada por causa de um pneu furado e o outro carro estaciona para tirar satisfações. Segue-se uma escalada da violência conforme cada um tenta mostrar ao outro quem é o mais forte.


No quarto episódio, o grande Ricardo Darín (que já foi visto nos cinemas por aqui em outro filme episódio este ano, "O que os homens falam") é um engenheiro de demolições que se vê enredado em um mar de corrupção e burocracia kafkanianas quando tenta recuperar seu carro, que havia sido guinchado injustamente pelo departamento de trânsito. Darín é o grande astro do cinema argentino e tem posição de destaque no pôster do filme. É sobretudo um ótimo ator e neste episódio não é diferente. O final é deliciosamente irônico.

O quinto episódio trata do tema da impunidade. Um rapaz de família rica, voltando de um bar na BMW do pai, atropela uma mulher grávida e foge da cena do acidente. O pai (Oscar Martinez) chama o advogado (Osmar Núñez) para tratar do assunto e eles planejam colocar um "laranja" para assumir a culpa pelo atropelamento. Os diálogos entre o pai e o advogado são ótimos. Qual o preço da liberdade de um filho?

O último episódio trata de infidelidade e problemas conjugais em plena cerimônia de um casamento. A noiva (Erica Rivas) descobre que a amante do marido está na festa e resolve se vingar dele. As consequências são desastrosas.

"Relatos Selvagens" foi um grande sucesso na Argentina e concorreu à Palma de Ouro no Festival de Cannes. Também foi o filme escolhido para tentar uma vaga ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro pela Argentina. A alta qualidade de todos os episódios faz com que o filme não caia no problema de outros exemplares do gênero, que geralmente alternam curtas bons com outros ruins. Há uma continuidade visual e temática entre os episódios muito interessante. Os problemas do casamento de Darín parecem explodir no episódio da noiva. O carro visto como arma no episódio dos dois motoristas causa a morte de uma mulher grávida em outro episódio. A opressão da vida urbana moderna, violência, estresse e burocracia caberiam perfeitamente no Brasil. Para não perder. Visto no Topázio Cinemas, em Campinas.

Câmera Escura

terça-feira, 21 de outubro de 2014

O Último Concerto

Um quarteto de cordas é composto pelo primeiro violino, segundo violino, viola e violoncelo. Os quatro devem tocar como se fossem um único instrumento, complementando e apoiando um ao outro. O quarteto "A Fuga" toca há 25 anos e, na superfície, é afinado a harmonioso. Em um ensaio, porém, o violoncelista Peter (Christopher Walken) percebe uma dificuldade em acompanhar os outros. "Nosso vibrato está diferente", diz Daniel (Mark Ivanir), o metódico e perfeccionista primeiro violinista do conjunto. Peter vai consultar um médico e descobre que está com os primeiros sinais do Mal de Parkinson. Para um violoncelista, isso pode significar a aposentadoria. Para "A Fuga", perder Peter poderia representar o fim do quarteto.

"O Último Concerto" é escrito e dirigido pelo austríaco Yaron Zilberman. Foi produzido em 2012, mas lançado só agora nos cinemas brasileiros, mostrando um dos últimos trabalhos do grande ator Philip Seymour-Hoffman ("Antes que o diabo saiba que você está morto"), que morreu no começo deste ano. Hoffman, muito bem como sempre, interpreta Robert, o apaixonado segundo violinista do grupo. Ele é casado com Juliette (Catherine Keener, de "Onde vivem os monstros"), que toca viola; os dois têm uma filha adulta, Alexandra (Imogen Poots) que também é violinista. Um dos temas do filme é como a vida de um instrumentista clássico é dominado pela música. Músicos, como todo artista, têm um ego bastante grande; como administrá-lo em um quarteto? (leia mais abaixo)


O anúncio da possível aposentadoria de Peter e sua troca por uma violoncelista desperta nos membros da "Fuga" sentimentos que ficaram reprimidos durante 25 anos. Robert (Hoffman), por exemplo, resolve que não quer mais ter um papel secundário no grupo e quer alternar com Daniel o lugar de primeiro violinista. Juliette (Keener) não sabe se quer continuar no quarteto se Peter sair e as atitudes de Robert fazem com que ela duvide do próprio casamento. Daniel, o frio e equilibrado primeiro violinista, se vê tentado a seguir o coração em um romance complicado com Alexandra. Não demora muito para que todos estejam em pé de guerra.

Filmes sobre música não são raros e costumam seguir algumas fórmulas (curiosamente parecidas com as dos filmes sobre esportes). Há o treinamento rigoroso e o abrir mão da vida pessoal pela carreira. Há a vaidade em se apresentar em público. Há o desejo de se atingir a perfeição e conquistar a performance perfeita. Filmes como "Encontro com Vênus" (1991), de István Szabó, "O Concerto" (2009), de Radu Mihaileneau, "O Quarteto" (dirigido pelo ator Dustin Hoffman em 2012), entre vários outros, seguem estas fórmulas.

"O Último Concerto" não é diferente. O filme deve muito à qualidade do elenco. Christopher Walken, particularmente, está ótimo, fugindo um pouco da caricatura e criando uma interpretação sincera como um músico veterano. O mundo apresentado pelo filme pode não ser do agrado do grande público. A música clássica, infelizmente, não é tão popular por aqui quanto é nos Estados Unidos ou Europa. Tanta dedicação como a apresentada pelos personagens pode parecer exagerada para a maioria das pessoas. Tocar música clássica requer não apenas o dom, mas treinos rigorosos para tentar alcançar a intenção do compositor. 

O quarteto para cordas nº 14, Opus 131, de Beethoven, apresentado no filme, foi interpretado pelo Quarteto de Cordas Brentano. Em cartaz no Topázio Cinemas, em Campinas.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Bem-vindo a Nova York

Em maio de 2011, o diretor do FMI Dominique Strauss-Kahn foi preso em Nova York acusado de ter estuprado uma camareira de hotel. Além do cargo no Fundo Monetário Internacional, Strauss-Kahn era cotado como candidato à presidência da república da França. O escândalo forçou sua renúncia do FMI e acabou com suas ambições políticas.

O episódio ganha vida nas telas com roteiro e direção do veterano diretor americano Abel Ferrara ("O Rei de Nova York"), em um filme marcado por polêmicas. Ferrara não está interessado em fazer um thriller convencional, em que o espectador fica tentando descobrir a culpa ou inocência do protagonista. O filme abre com um letreiro explicando o caso, dizendo que o roteiro foi baseado o máximo possível nos fatos conhecidos publicamente, mas que o que aconteceu na intimidade era uma obra de ficção. O letreiro até termina com qualquer suspense ao dizer que o caso foi arquivado pois a justiça entendeu que não havia como provar a versão da camareira.

Do que trata, então, o filme de Ferrara? O grande ator francês Gérard Depardieu ("Minhas tardes com Margueritte") interpreta Devereaux, o diretor do Banco Mundial que está em uma viagem de negócios em Nova York. Desde a primeira vez que o vemos, Devereaux está cercado por prostitutas, mesmo em uma reunião de negócios. Ferrara filma de forma quase documental, com takes longos, uso de lentes zoom e correções de foco (embora não seja aquele estilo nervoso de câmera na mão comum nestes casos). Devereaux não é um homem agradável. Depardieu, enorme em talento e tamanho, enche a tela com um personagem abjeto, que vê toda mulher como algo a ser usada para o sexo.



A primeira meia hora de filme não é confortável de se ver; a câmera de Ferrara filma longas cenas de sexo em grupo, em imagens de gosto duvidoso. Depardieu interpreta Devereaux como um porco, inclusive gemendo de forma animalesca nas cenas de sexo. A necessidade destas sequências é questionável e Abel Ferrara enfrentou vários problemas para lançar o filme (que no Brasil recebeu a classificação etária de 18 anos).

Depois destas intermináveis cenas de sexo chega a cena chave do filme. Uma camareira, sem saber que Devereaux estava no quarto, entra para limpar e o encontra nu, saindo do chuveiro. Ele a vê como mais uma prostituta e parte para cima dela. Ela resiste, foge e o acusa de tentativa de estupro. Tudo é mostrado lentamente por Ferrara, que reproduz as cenas reais de tribunais sem aquele glamour associado a filmes do gênero. As cortes são austeras, rápidas e profissionais. Há uma longa sequência mostrando todos os passos pelos quais Devereaux passa ao ser preso. Novamente, parece que estamos vendo um documentário e há força nas imagens arquitetadas por Ferrara.

A veterana Jacqueline Bisset interpreta Simone, a esposa de Devereaux. É daquelas mulheres que fazem vista grossa para as várias infidelidades do marido e o tratam como um moleque malcriado. Depardieu e Bisset trabalharam com François Truffaut no passado e há até uma cena em que  Devereaux está assistindo a um filme do mestre francês, "Domicílio Conjugal". Os dois têm várias sequências juntos em longas cenas que, por vezes, parecem improvisadas.

Não fica muito claro, porém, o que Abel Ferrara quer dizer com esta história. A personagem da camareira desaparece pouco depois da acusação e nunca mais é vista, e o crime de estupro fica perdido em meio ao comportamento escandaloso "normal" de Devereaux. Há cenas que o mostram com outras mulheres, que vão para a cama com ele voluntariamente ou à força. Fica difícil entender qual é o atrativo que este homem desprezível tem. É tudo uma questão de dinheiro? É uma crítica ao sistema financeiro? À política? Por que o espectador deve se interessar por este personagem que, nas palavras do próprio, não sente nada por ninguém, nem por ele mesmo?

Mesmo irregular, porém, a direção segura de Ferrara e a entrega de Depardieu ao papel fazem de "Bem-vindo a Nova York" uma experiência interessante, apesar de não muito agradável. Visto no Topázio Cinemas, em Campinas.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Locke (Netflix)

Alfred Hitchcock tinha tal domínio sobre o que fazia que gostava de se desafiar com situações limitantes. Fez um filme inteiro passado em um bote em "Um Barco e Nove Destinos" (1943); em "Festim Diabólico" (1948), uma série de planos sequência simulavam um movimento contínuo de câmera, em tempo real; em "Janela Indiscreta" (1954), colocou James Stewart preso a uma cadeira de rodas e fez todo o filme do ponto de vista dele. Hitch, provavelmente, aprovaria "Locke", filme escrito e dirigido por Steven Knight, disponível na Netflix.

Ivan Locke (Tom Hardy, de "Os Infratores") é um empreiteiro responsável pela construção de um novo edifício em Birmingham, Inglaterra. Na véspera do dia crucial para o projeto, quando mais de 200 caminhões virão despejar toneladas de concreto nas fundações do prédio, Locke entra em sua BMW e parte para Londres, em uma viagem que vai mudar sua vida. Em uma proeza técnica considerável, os 85 minutos do filme se passam dentro do carro de Locke; Tom Hardy é o único ator  que vemos durante toda a produção.

Ele não está sozinho, no entanto. As vozes de uma série de personagens podem ser ouvidas pelo viva voz do seu celular, e Locke tem que resolver problemas em três frentes distintas: o canteiro de obras que ele deixou para trás, com várias pessoas desesperadas precisando da orientação dele; sua família, composta pela esposa e dois filhos, entusiasmados pela transmissão de um jogo importante de futebol e o aguardando em casa; e Bethan (Olivia Colman), uma mulher que está em Londres em trabalho de parto de um filho ilegítimo de Locke. Os dois haviam dormido juntos por uma única vez no ano anterior, nas comemorações de uma obra bem sucedida. Locke tem consciência de que fez algo errado e decidiu, justo nesta noite, quebrar com uma vida regrada e íntegra para consertar este erro, nem que tenha que destruir sua carreira e casamento no processo. (leia mais abaixo)


Filmes vistos por um único ponto de vista não são novidade; em 2010, Ryan Reynolds passa o tempo inteiro dentro de um caixão em "Enterrado Vivo", angustiante filme de Rodrigo Cortés. Robert Redford também é o único ser humano visto pelos 144 minutos de "Até o Fim", dirigido por J.C. Chandor em 2013. E Colin Farrell fez um filme praticamente solo em "Por um Fio", em 2002, dirigido por Joel Schumacher.

Assim como nestes outros exemplos, o que marca "Locke", além do feito técnico, é o lado humano. Ivan Locke está longe de ser perfeito. Ele é sem dúvida um workaholic, embora tenha uma visão bastante filosófica sobre seu trabalho. "Concreto é delicado como sangue", diz ele a um subordinado desesperado. Tudo isto é apresentado ao espectador como em uma rádio novela, enquanto Locke viaja pela noite inglesa. Tom Hardy carrega o filme nas costas, mas também é digno de nota o ótimo trabalho vocal realizado pelos atores invisíveis com quem ele dialoga pelo telefone.

Apesar de seu deslize conjugal, Locke é um homem íntegro e responsável. Por que, então, ele arriscaria um trabalho de milhões de libras por causa do bebê de uma mulher que ele mal conhece? Por que abrir o jogo com a esposa esta noite? O que seu próprio nascimento tem a ver com isso?

É interessante notar o significado do seu nome; John Locke, um filósofo do século 17, desenvolveu uma teoria conhecida por "tabula rasa", ou "folha em branco". Ivan Locke, nesta longa viagem noturna, decidiu zerar sua vida e recomeçar do zero. Imperdível.

Câmera Escura


quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Garota Exemplar (com SPOILERS)

escrevi sobre este filme aqui no blog, mas após rever o longa de David Fincher resolvi falar mais a respeito. Ao contrário do outro texto, em que tentei ser o mais vago possível, este é um texto voltado a quem já assistiu ao filme. Esta crítica contém spoilers, considere-se avisado.

É possível tecer várias teorias válidas a respeito de "Garota Exemplar". Vou tentar expor algumas ideias que me ocorreram durante as duas vezes que me deixei levar por este filme singular.

Uma imagem me chamou a atenção nesta segunda visita. No terço final do filme, quando Amy volta para casa após ter matado o personagem de Neil Patrick Harris, ela é interrogada pelo FBI e pela polícia. Ela é colocada em xeque pela policial Boney (Kim Dickens), mas consegue se safar. É então que a vemos no banco de trás de um carro, sendo levada para casa. Ela está surpresa com a quantidade de repórteres e curiosos que estão esperando por ela, e podemos ver uma expressão de alegria quase infantil em seu rosto. Após passar pelo inferno (mesmo que um inferno causado por ela mesma), ela retorna para casa como uma espécie de heroína. E, fato importante, as pessoas estão vibrando por ela e não por "Amazing Amy", a personagem de ficção que os pais haviam criado (e feito uma fortuna com ela) em uma série de livros infantis. Eu me pergunto se Amy não fez tudo aquilo apenas para conseguir finalmente superar seu alter-ego literário.


É importante voltar a uma cena no início do filme em que Amy e o futuro marido, Nick, estão em uma recepção para celebrar o casamento fictício da personagem. Amy descreve como os pais haviam transformado a garota fictícia em uma versão perfeita da filha; se a Amy real era ruim em esportes, "Amazing Amy" era uma atleta, e assim por diante. Apesar de filha única, Amy teve que competir a vida toda com uma "irmã" exemplar. O que também nos leva à relação entre Nick e a irmã gêmea dele, Margo (Carrie Coon). Reparem com que desprezo Amy diz ao FBI, na cena descrita acima, que Nick guardava na garagem da irmã as coisas que ele comprou com o cartão de crédito. "Eles são muito próximos", ela sussurra.


Amy quer ser alguém. Ela quer ser uma escritora de verdade, não uma mera colunista de uma revista feminina. Ao mesmo tempo, ela se ressente da família amorosa do marido (que saiu de Nova York para cuidar da mãe doente) e, ao descobrir que ele a está traindo com uma aluna, quer se vingar dele. Mas não creio que vingança seja o único desejo dela. Ela não quer uma simples vingança. Ela quer planejar a história perfeita, o "livro" perfeito. Perceba com que paixão literária ela mergulha na escrita do diário falso em que descreve seu relacionamento. A policial, quando o encontra na cabana do pai de Nick, mal consegue parar de lê-lo. Nós da platéia também embarcamos na ficção de Amy. Ela usa de clichês românticos como o encontro por acaso em uma festa ou a criação de "símbolos" afetivos do casal, como o cobrir do queixo do marido quando está dizendo a verdade. Ela cria "caças ao tesouro" a cada aniversário de casamento, forçando o marido a seguir pistas, como em um ensaio para o crime perfeito que ela fará um dia.

Amy, mesmo em fuga e morando em um motel barato, não consegue ficar longe dos programas sensacionalistas da TV que a transformaram na heroína que ela sempre quis ser. Falhando em ser uma escritora na vida real, ela decidiu se tornar autora do próprio drama doentio, e planeja levar a todos com ela.

Nick, no final, parece estar ciente disto tudo. "Vocês devem estar muito orgulhosos dela", ele diz aos sogros em uma cena em que Amy está há quatro horas dando autógrafos. A ironia do texto de Gillian Flynn e do filme de David Fincher é que, no fundo, as pessoas fariam de tudo para ser bem sucedidas e famosas. E para manter um relacionamento, por mais doentio que seja. Apesar de tudo o que passou com a esposa, Nick Dunne se rende às maquinações de Amy e entra no jogo dela. É o advogado (sempre prático) que diz: "Vocês têm um contrato para fazer um filme, um livro, o bar vai virar uma franquia...você deveria agradecer à ela". E acrescenta: "Só não a irrite".

Kim Novak em "Um Corpo que Cai" (1958)

Janet Leigh em "Psicose" (1963)

Rosamund Pike em "Garota Exemplar"

Um parênteses para as várias referências ao mestre Hitchcock. Rosamund Pike é a perfeita loira de Hitchcock, e estaria à vontade em um filme dele. Há várias referências a "Psicose", como a cena do chuveiro (o sangue escorrendo pelo ralo), ou a cena em que um policial encontra Amy dormindo dentro do carro e ela vai embora. Há toques de "Um Corpo que Cai" também. O filme de Hitchcock ficou famoso por revelar seu segredo no meio da trama, e não no final, e o mesmo acontece em "Garota Exemplar". Há também o tema de alguém querer transformar outra pessoa em um imagem idealizada, como James Stewart faz com Kim Novak em "Um Corpo que Cai". A questão do casamento, suas alegrias e problemas, também foi usado por Hitchcock em "Janela Indiscreta", em que Grace Kelly quer se casar com o fotógrafo James Stewart, que está reticente a respeito. Ele assiste a vários tipos de relacionamentos (inclusive um que termina em morte) pela janela do apartamento, onde está preso com uma perna quebrada, e não acha que é uma boa ideia.  

Várias outras teorias podem ser feitas a partir do filme de Fincher. Assista o filme e desenvolva a sua.

João Solimeo

domingo, 5 de outubro de 2014

Garota Exemplar

Ok, por onde eu começo? Provavelmente, por David Fincher. Que diretor hoje teria a capacidade de pegar uma trama rocambolesca e novelesca como a de "Garota Exemplar" e conseguir, primeiro: lhe  dar coesão; segundo: não entregar uma telenovela? Não conheço o livro de Gillian Flynn que serviu de base para o roteiro (adaptado pela própria Flynn), mas ele parece ter todos os elementos de um best seller de sucesso sensacionalista escrito por figuras como Sidney Sheldon ou Patricia Highsmith.

Fincher é um técnico consumado que construiu sua carreira a partir de videoclips meticulosamente dirigidos (como Vogue, de Madonna), comerciais de TV e como técnico da ILM, a empresa de efeitos especiais de George Lucas. Apesar de uma estréia cinematográfica mal sucedida em "Alien³" (1992), estabeleceu sua visão de mundo um tanto sinistra em filmes como "Se7en - Os Sete Pecados Capitais" (1995), "Clube da Luta"(1997) e o excepcional "Zodíaco" (2007). Apaixonou-se pelo cinema digital (Fincher é um dos principais usuários das câmeras RED) e levou a técnica ao limite em filmes como "A Rede Social" (2010), "Os homens que não amavam as mulheres" (2011) e a série "House of Cards", da Netflix. Fez até algumas bobagens pelo caminho, como "O Curioso Caso de Benjamin Button" (2008) e filmes divertidos, mas menores, como "Quarto do Pânico" (2002).

Todo este preâmbulo para voltarmos a "Garota Exemplar", do qual é difícil falar da trama (ou das múltiplas tramas) sem revelar seus segredos. Fincher subverte as convenções do thriller e entrega algo a mais, um olhar afiado sobre a sociedade do espetáculo criada pela mídia com a colaboração do público.

No dia do quinto aniversário de casamento de Nick (Ben Affleck, de "Argo") e Amy (Rosamund Pike, de "Jack Reacher - O Último Tiro"), ela desaparece em pleno ar. A polícia encontra traços de sangue pela casa e outras pistas de um suposto crime. Nick é o principal suspeito, mas ele parece tão perdido que, a princípio, a polícia pega leve com ele. Amy era muito bonita e havia sido uma escritora de sucesso; seu desaparecimento poderia ter sido causado por algumas figuras do passado, como um obcecado ex-namorado, Desi (interpretado por Neil Patrick Harris, da série "How I met you mother").


Os pais de Amy, que haviam sido da alta sociedade de Nova York, organizam uma campanha na mídia para encontrar a filha e comovem a nação. O comportamento de Nick é considerado estranho. Ele não parece tão abalado com o sumiço da esposa e não consegue interpretar o papel do "marido desesperado" em frente às câmeras. Ele está escondendo alguma coisa?

Os segredos do casal são revelados aos poucos através de uma montagem paralela que mistura cenas do presente com trechos lidos por Amy diretamente do diário dela. Ela descreve um casamento que começou de forma perfeita mas, aos poucos, foi sendo minado pela crise financeira e supostos atos violentos por parte de Nick.

Fincher e o roteiro de Flynn brincam o tempo todo com a percepção do público. Logo descobrimos que não podemos acreditar piamente nas informações apresentadas, nem mesmo nos supostos flashbacks contando a história do casal (dizem que Hitchcock sempre se arrependeu de ter usado um falso flashback em um de seus suspenses, "Pavor nos Bastidores", de 1950, mas o recurso é muito bem utilizado aqui).

"Garota Exemplar" não tem a seriedade contida de filmes anteriores de Fincher, como "Se7en", cujo roteiro, racionalmente, também não fazia muito sentido. As várias reviravoltas transformam o filme em uma série de episódios cada vez mais absurdos, que Fincher contrabalança com o aumento da sátira e até mesmo com comentários metalinguísticos dos personagens. É bem vinda a entrada de um advogado interpretado muito bem por Tyler Perry, que faz uma espécie de contraponto satírico aos fatos da trama. Todo o elenco, aliás, está muito bem (a começar por Affleck e Pike); destaques para Carrie Coon (muito parecida com Joan Cusack), que interpreta a irmã gêmea de Affleck, e Kim Dickens como a policial que é a "voz da razão" do filme.

O final, bastante irônico, pode decepcionar àqueles que esperam uma resolução tradicional. "Zodíaco" também não terminava da forma "redonda" que muitos queriam. "Garota Exemplar", com sua mistura de suspense, sensacionalismo, sexo e muito sangue, porém, é um dos melhores filmes do ano.