domingo, 30 de outubro de 2016

O Contador (2016)

"O Contador" é o tipo de filme que eu costumo chamar de "bobagem divertida". Imagine um personagem que é um gênio matemático como o John Nash interpretado por Russell Crowe em "Uma Mente Brilhante" (2001), ou o Will Hunting de Matt Damon em "Gênio Indomável" (1997); acrescente a isso o autismo de Dustin Hoffman em "Rain Man" (1988). Para finalizar, imagine que este personagem também é um mestre em artes marciais e um sniper capaz de acertar uma mosca a um quilômetro de distância. Este é Christian Wolff (Ben Affleck), um rapaz discreto e metódico que o resto do mundo conhece como um pacato contador do sul de Chicago.

Acontece que o chefe do Departamento do Tesouro americano (o grande J.K. Simmons) está atrás dele. Wolff aparece anonimamente como uma figura misteriosa em diversas fotos de traficantes e outros criminosos famosos mundo afora e estaria ligado ao massacre de um grupo de mafiosos. Simmons recruta uma jovem analista (Cynthia Addai-Robinson) para descobrir quem é este misterioso "contador" que, milagrosamente, ainda não foi morto por nenhum destes criminosos.

O roteiro (divertidamente absurdo) empilha uma série de tramas e subtramas nos confusos vinte minutos iniciais do filme. Flashbacks nos mostram a infância sofrida do personagem de Affleck, uma criança problemática que acaba afugentando a mãe e provocando no pai (um rigoroso homem do exército) uma forte reação: ele treina o filho autista, mais seu irmão pequeno, em artes marciais, técnicas diversas de defesa e, na escola, a não levar desaforo para casa. "Todo mundo que é diferente acaba assustando as pessoas", recita o pai.

No presente, Ben Affleck é contratado por uma firma de robótica para analisar os livros de contabilidade. Uma jovem funcionária, Dana (Anna Kendrick, que já está um pouco velha para o visual adolescente), havia desconfiado de um desvio no dinheiro da empresa e Affleck é chamado para descobrir se é verdade. Isso dá ao filme a desculpa para mostrar aquelas cenas clichês de gênios matemáticos trabalhando, escrevendo furiosamente fileiras de números nas paredes de vidro de uma sala gigante e fazendo contas impossíveis na cabeça. Quando Affleck descobre que, de fato, alguém estava fazendo "caixa dois" na firma, uma série de assassinatos estranhos começam a acontecer, e logo o filme muda para a fase "Jason Bourne" e Ben Affleck pode mostrar as outras habilidades de seu personagem em grandes cenas de ação.

É tudo, como disse, uma grande bobagem, mas uma bobagem divertida. Há a participação especial de bons atores como John Lithgow, Jeffrey Tambor, Jean Smart e o já citado J.K. Simmons. Jon Bernthal chama a atenção como um assassino contratado para pegar o personagem de Affleck. Uma série de clichês culminam com um grande tiroteio no terceiro ato, em que revelações "surpreendentes" serão feitas. Se você entrar no jogo, pode se divertir com o filme. Se começar a pensar demais, os rombos de lógica vão por tudo a perder. Eu, confesso, me diverti.

João Solimeo

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Elle (2016)

A violência parece cercar Michèle Leblanc (Isabelle Huppert, ótima como sempre). Logo na primeira cena do filme testemunhamos, aparentemente, Michèle sendo estuprada por um homem que invadiu sua casa. As atitudes dela após o fato, no entanto, não parecem condizentes com uma mulher que acabou de ser violentada. No trabalho dela, mais violência, agora virtual. Michèle é dona de uma empresa que cria viodeogames, e o mais novo produto da casa mostra, com detalhes, uma mulher sendo violentamente atacada por um monstro. "Precisa ser mais forte", ela diz para um grupo de jovens desenvolvedores. No campo familiar, a mãe de Michèle fica insistindo para que ela vá visitar o pai na cadeia, preso há muitos anos por um crime bárbaro.

"Elle" é dirigido pelo lendário cineasta holandês Paul Verhoeven (78 anos), que depois de alguns sucessos na Europa, no começo dos anos 1980, foi conquistar a América com filmes como "Robocop" (1987), "Total Recall" (1990) e "Instinto Selvagem" (1992). O fracasso veio com a bomba "Showgirls" (1995) e outros filmes pouco vistos que levaram o diretor de volta à Europa. Verhoeven mostra toda sua competência neste filme em que mistura drama familiar com cenas de suspense à Alfred Hitchcock.

O roteiro é bastante francês. Michèle convive com o ex-marido, faz questão de conhecer a jovem namorada dele e tem um caso com o marido da melhor amiga. No corpo de qualquer outra atriz a personagem provavelmente passaria por fria, mas Huppert a interpreta com tanto carisma que Michèle, ao invés de ser uma mulher traumatizada e esmagada pelo passado, parece até conformada e pragmática com a série de fatalidades que acontecem na sua vida. Há uma curiosa ligação entre violência e intimidade no filme de Verhoeven que também é bastante européia. Sobre a trama não se pode falar muito sem acabar revelando detalhes. Assim como Hitchcock, Verhoeven entende que o bom filme de suspense não é o que guarda segredo por muito tempo, mas sim o que o revela no meio da trama e deixa o espectador ainda mais interessado no que vai acontecer.

"Elle", marquem aí, é boa aposta para o Oscar de melhor filme estrangeiro ano que vem. (e pode até sobrar uma indicação para Huppert).

João Solimeo

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Avenida ("Boulevard", 2014)

Havia o Robin Williams comediante, com sua performance acelerada, as frases saindo como uma metralhadora, os movimentos ágeis, as dezenas de vozes diferentes, o humor ácido e contundente, de filmes como "Bom dia, Vietnam", "Alladin", "Uma Babá Quase Perfeita" e "Jumanji". Havia também outro Robin Williams, de voz suave e paternal, o olhar triste e introspectivo, que interpretava o professor de "Sociedade dos Poetas Mortos", o psiquiatra de "Gênio Indomável", ou o viúvo trágico de "Amor Além da Vida". E havia ainda outro Robin Williams, pouco conhecido do grande público, que era o ator que se arriscava em filmes independentes como "Retratos de uma Obsessão", "Violação de Privacidade" e "O Melhor Pai do Mundo".  Todos estes personagens encontraram um fim trágico em agosto de 2014, quando o corpo do comediante foi encontrado em sua casa, aparentemente vítima de suicídio.

Um de seus últimos filmes, "Boulevard" (a Netflix exibe o filme com o título de "Avenida") traz Williams em um de seus papéis arriscados. Ele interpreta Nolan Mack, um bancário que trabalha há 26 anos na mesma agência, almoça sempre no mesmo lugar e está casado com a mesma mulher (a ótima Kathy Baker) há décadas. Ele parece o marido ideal. É carinhoso com a esposa, lhe leva café na cama, prepara jantares e até lava a louça. Nolan cuida do pai doente em uma casa de repouso e é tão profissional que o gerente do banco está preparando uma promoção para ele.

As coisas, porém, não são exatamente o que parecem. Nolan esconde de todos, até dele mesmo, um segredo; Nolan é gay. Uma noite, voltando da casa de repouso do pai, ele para em um semáforo e é atraído por um garoto de programa chamado Leo (Roberto Aguire). Ele leva o rapaz até um motel mas, apesar da disposição do garoto, Nolan quer "apenas conversar". Os dois começam um "relacionamento" baseado não só na enorme carência de Nolan mas também no seu dinheiro. Leo tenta manter as coisas de forma "profissional" mas, aos poucos, parece corresponder ao interesse de Nolan, que é uma mistura de desejo físico (apesar de quase platônico) e uma preocupação paternal pelo rapaz. A esposa, em casa, finge que não sabe o que está acontecendo, apesar deles dormirem em quartos separados e do marido tratá-la com muito respeito e carinho, mas nenhum (por falta de uma palavra melhor) "tesão".

O filme, escrito por Douglas Soesbe e dirigido por Dito Montiel, é lento e melancólico. Robin Williams carrega o filme nas costas, auxiliado pelo competente elenco (que também conta como Bob Odenkirk, de "Better Call Saul"). O fato de sabermos que foi o último papel de Williams empresta ao personagem ainda mais melancolia e peso. Robin Williams fala pouco, se movimenta devagar e está bem diferente do que se espera dele, mas é uma bela interpretação. O roteiro vai em um crescendo que, infelizmente, leva a um final que me pareceu fácil demais.

Um filme pequeno, bem dirigido e interpretado, que talvez será mais lembrado pela despedida precoce de Williams do que por sua trama. Disponível na Netflix.

João Solimeo