sábado, 30 de outubro de 2010

Federal

Impossível falar sobre "Federal" sem comparar com "Tropa de Elite". E é como comparar um episódio de uma série barata de televisão com um filme de Scorsese. "Federal" é, em vários aspectos, vergonhoso. É o primeiro longa metragem de Erik de Castro, cujo perfil no "press kit", disponível no site oficial, diz que ele estudou cinema em Los Angeles, e que o roteiro de "Federal" participou do conceituado laboratório de roteiros do Instituto Sundance.

"Federal" se passa em Brasília, terra natal do diretor, e o título se baseia tanto na capital quanto na polícia federal, cujos protagonistas do filme são membros. São todos clichês. Carlos Alberto Riccelli é Vital, delegado da Polícia Federal que luta contra o principal traficante de Brasília, Béque, interpretado pelo músico Eduardo Dussek, que está totalmente desperdiçado. Dussek, em seus shows, é irreverente, divertido, engraçado. Aqui ele é uma caricatura de um "vilão". Selton Mello (incansável e precisando escolher melhor seus projetos) é Dani, um policial jovem e "do bem", que é contra as torturas usadas pelos companheiros para conseguir informações. "A ditadura acabou", diz ele, que tem um diálogo patético com Riccelli a respeito dos "anos de chumbo". Mello e Riccelli são acompanhados pelos colegas Cesário Augusto (o policial Lua) e Christovan Neto (Rocha, o obrigatório personagem negro estereotipado).

O elenco ainda conta com a participação "especial" de Michael Madsen, ator americano que já trabalhou com Tarantino em filmes como "Cães de Aluguel" e "Kill Bill", como um policial do DEA (Drug Enforcement Administration). Madsen, com sua voz rouca, faz duas ou três cenas, contracenando com Riccelli e Dussek, e desaparece da mesma forma como surgiu, sem dizer a que veio. Praticamente todo roteiro, aliás, sofre da falta de coerência. O Dani de Selton Melo é um personagem sem família, amigos ou um passado. Ele se envolve com uma mulher "quente" em uma boate que é descrita como uma "diplomata venezuelana", Sofia (Carolina Gómez). Cenas episódicas se seguem na tela e não se vê ligação entre os personagens, sua motivação ou a consequência de suas ações. Há cenas que lembram "Tropa de Elite", como a tortura de um bandido colocando um saco de plástico em sua cabeça. Mas não há nenhuma explicação ou detalhamento sobre como funcionam as operações da Polícia Federal ou qual o processo que levou à formação de áreas pobres nos arredores de Brasília. O "vilão" de Dussek também não tem história, ele simplesmente é um cara "mau". De tantos em tantos minutos, uma cena de sexo "tórrida" acontece na tela para animar um pouco a pobreza do roteiro.

Há mais conteúdo em um dos planos finais de "Tropa de Elite 2", aquele que mostra Brasília, do que em todo filme "Federal". Sim, são filmes diferentes, propostas diferentes. Mas não é justificativa para a falta de seriedade.


segunda-feira, 25 de outubro de 2010

London River - Destinos Cruzados

Não é por acaso que o título brasileiro de “London River” seja “Destinos Cruzados”, o mesmo dado a um filme de Sydney Pollack, em 1999. Naquele filme, Harrison Ford e Kristin Scott Thomas se conhecem ao investigar a morte de seus respectivos esposos. Eles descobrem que os dois, que haviam morrido em um acidente aéreo, eram amantes. Em “London River”, uma viúva inglesa chamada Elisabeth Sommers (Blenda Blethyn), mora na Ilha de Guernsey, onde tem uma pequena fazenda onde planta vegetais. Já o africano (não fica claro de onde ele é) Ousmane (Sotigui Kouyaté) mora na França há quinze anos e trabalha como guarda florestal. Os dois vão procurar pelos filhos e também descobrem que eram amantes.

Em 7 de julho de 2005, uma série de atentados terroristas aconteceu em Londres, explodindo trens do metrô e ônibus. Elisabeth fica sabendo das notícias pela televisão e liga para a filha, que mora em Londres, mas só atende a caixa postal. Preocupada, ela parte para a cidade. Ousmane fica sabendo pela mulher, da África, que também não tem notícias do filho, que está em Londres. Ousmane não o vê desde que ele tinha seis anos de idade, e parte para a capital da Inglaterra sem nem saber como o filho se parece. Elisabeth e Ousmane, ela branca e cristã, ele negro e muçulmano, vão se encontrar em Londres procurando por seus filhos.

“London River” é daqueles filmes em que a interpretação dos atores é sua principal qualidade. O roteiro e direção do franco-argelino Rachid Bouchareb não têm nada de extraordinário, e o filme, mesmo curto, se arrasta em uma série de cenas repetitivas, em que a inglesa e o africano ficam se encontrando em hospitais, supermercados e meios de transporte. Elisabeth descobre que a filha morava no segundo andar de um prédio em uma vizinhança muçulmana de Londres. Cheia de preconceitos, ela fica horrorizada por saber também que a filha estava aprendendo árabe (“Quem fala árabe?”, ela pergunta para a professora da filha). Ousmane fica sabendo que o filho frequentava a mesma aula que a filha de Elisabeth, e encontra uma foto em que os dois estão juntos. Ele entra me contato com a Elisabeth, que ao invés de se juntar a ele na busca pela filha, chama a polícia.

Blethyn e Kouyaté dão ao filme dignidade e realismo. O ator, que morreu em abril deste ano, aos 73 anos, interpreta Ousmane como um homem que viveu por muito tempo e não conheceu a família. Alto e magro, ele caminha por Londres apoiado em uma bengala e lida com o preconceito de Elisabeth com calma e paciência. Kouyaté ganhou o Urso de Prata em Berlim por esta interpretação. Blenda Blethyn é a típica mãe que descobre que não conhece a própria filha. Mas a preocupação quanto ao destino dela faz com que, aos poucos, sua revolta e preconceitos vão cedendo. Relutante, ela aceita a ajuda de Ousmane e os dois continuam procurando por seus filhos entre as centenas de mortos e feridos dos atentados. Um filme americano provavelmente teria criado um romance entre os dois (como no filme de Pollack), e sem dúvida seriam interpretados por atores mais novos. “London River” é mais documental, realista. O período retratado no filme é o mesmo do também documental “Jean Charles”, sobre o brasileiro morto pela polícia britânica duas semanas após os atentados de 7 de julho, confundido com um terrorista. (visto no Topázio Cinemas).


domingo, 24 de outubro de 2010

Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague

Festival de Cannes, 1959. François Truffaut, crítico da mítica revista "Cahiers du Cinemá", que havia sido barrado pelo festival no ano anterior por seus textos polêmicos, é aclamado pela platéia. Seu primeiro longa-metragem, e obra prima, "Os Incompreendidos", acaba de ser exibido. Um garoto de 14 anos, Jean-Pierre Léaud, é levantado nos braços da multidão.

Em Paris, outro crítico da revista, Jean-Luc Godard, está inquieto. Ele gostaria de estar no festival. Graças à ajuda de Truffaut e de Claude Chabrol, que lhe servem de fiadores, ele consegue financiamento para seu primeiro filme, "Acossados", um filme "policial" com Jean-Paul Belmondo.

Truffaut e Godard. Godard e Truffaut. Dois cinéfilos de carteirinha, críticos de cinema e criadores do movimento conhecido como a "nova onda", a Nouvelle Vague. Seguidores do maior crítico de cinema da história, André Bazin, Truffaut e Godard vieram de origens diferentes. Truffaut era pobre, humilde. Aos 16 anos, criou um cineclube. Aproveitava quando a família ia ao teatro para fugir e ir ao cinema escondido. Foi preso e um reformatório por roubar dinheiro para pagar as dívidas do cineclube. Godard era de família rica. Morou na Suíça, andava em carros importados americanos. Estava sempre de óculos escuros e atitude esnobe. Os dois se tornaram amigos e colaboradores. Até que a política os separou irremediavelmente e nunca mais se viram.

Esta é a história contada no documentário "Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague", que o Topázio Cinemas está exibindo em sua "Semana do Cinema Francês" (o filme será exibido novamente dia 27 de outubro, às 19h10). Dirigido por Emmanuel Laurent, o documentário mostra a vida, obra e amizade destes dois gigantes do cinema através de imagens de arquivo, entrevistas, centenas de fotos e, claro, cenas de seus filmes. Truffaut sempre foi o mais humano dos dois, o mais esperançoso com relação à vida e as pessoas. Era o cineasta das mulheres e das crianças. Sua maior criação foi o personagem Antoine Doinel, alter-ego que iniciou sua vida cinematográfica em "Os Incompreendidos". Interpretado por Jean-Pierre Léaud, Doinel reapareceu em mais três filmes, mas a imagem final de "Os Incompreendidos", quando o jovem Doinel foge do reformatório, corre até a praia e se volta para a câmera, é inesquecível.

Léaud se tornou uma espécie de irmão mais novo de Truffaut. Em uma cena do documentário, o garoto diz que sua vida mudou totalmente depois do filme, e que agora só queria ir ao cinema para ver "bons filmes".

Já Godard era mais seco do que Truffaut, e gostava de brincar com a linguagem cinematográfica. "Acossados" tinha a trama de um filme policial tradicional, mas Godard o filmou e editou de forma completamente nova. Os cortes da montagem não seguem o tradicional esquema plano/contra plano; a continuidade não é sempre respeitada, assim como o eixo da câmera, quase sempre "quebrado". Godard continuaria fazendo experimentos com a forma do cinema por toda a carreira.

Em 1968, três semanas antes do famoso "maio de 68", os cineastas da Nouvelle Vague, liderados por Truffaut e Godard, marcharam por Paris para protestar contra a demissão de Henri Langlois da Cinemateca Francesa. O local era o "templo" dos cinéfilos parisienses, que queriam manter Langlois na curadoria dos filmes. (Este protesto foi recriado por Bernardo Bertolucci em "Os Sonhadores", de 2003). No ano seguinte, também Truffaut e Godard conseguiram cancelar o Festival de Cannes, como uma forma de protesto por todos os problemas que estavam ocorrendo no mundo.

Depois disso, no entanto, as carreiras dos dois amigos mudou drasticamente. Godard se tornou completamente político, um ativista que queria fazer do cinema uma forma de protesto. Truffaut era um cineasta que amava o cinema em sua forma mais pura. A amizade dos dois foi definitivamente rompida quando Godard enviou uma carta cheia de "veneno" para Truffaut quando do lançamento do ótimo "A Noite Americana", a homenagem que Truffaut fez ao cinema em 1973. Godard chamou Truffaut de "mentiroso". Este retrucou em uma carta de 20 páginas em que acusava Godard de se aproveitar das classes pobres (das quais Godard nunca fez parte) para se promover.

O documentário termina com uma cena ótima, o teste de Jean-Pierre Léaud para o papel de Antoine Doinel em "Os Incompreendidos". A entrevista é muito parecida com uma cena do próprio filme, quando Doinel é entrevistado pelo psiquiatra do reformatório. Truffaut morreu precocemente, aos 52 anos, em 1984, e deixa saudades. Seu amor pelo cinema era enorme, expresso em mais de 25 filmes. Godard continua vivo e ativo, produzindo dezenas de filmes de "arte" com mensagens políticas.






quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Rebels on the Backlot (livro)

De tantos em tantos anos surge uma geração que tenta mudar a cara do cinema americano. A "indústria", como Hollywood é conhecida, é uma máquina bem lubrificada de fazer filmes que, pontualmente, lança filmes prontos para as telas dos "multiplexes" mundo afora. São filmes comerciais, seguindo fórmulas testadas e aprovadas pelo público que, geralmente, não quer gastar seu dinheiro com um produto arriscado e desconhecido. Mas, felizmente, os tempos mudam. Tradições são quebradas, valores discutidos e o cinema, ainda que tardiamente, acaba seguindo ou revelando novas tendências. Foi assim no final dos anos 60 e na década de 70, quando cineastas como Martin Scorsese, Francis Ford Copolla, Steven Spielberg, George Lucas, Peter Bogdanovich e tantos outros mudaram a forma de se criar filmes nos Estados Unidos. Esta história foi muito bem contada no livro "Easy Riders, Raging Bulls", de Peter Biskind. Os anos 80 viram uma onda de filmes extremamente comerciais (alguns muito bons), mas que não inovavam muito na arte de cinema. Coube aos anos 90, a última década do século XX e do milênio, trazer uma nova geração de cineastas criativos para as telas.

"Rebels on the Backlot" conta a história de alguns destes cineastas, chamados pela autora Sharon Waxman de "rebeldes". Ao contrário da geração cinéfila e universitária dos anos 70, os rebeldes dos anos 90 eram frutos da cultura pop americana, uma mistura de fast food com histórias em quadrinhos, filmes de kung-fu chineses e clipes da MTV. Waxman escolheu destacar seis deles para contar sua história: Quentin Tarantino (Pulp Fiction), Steven Soderbergh (Traffic), David Fincher (O Clube da Luta), Paul Thomas Anderson (Boogie Nights), David O. Russel (Três Reis) e Spike Jonze (Quero ser John Malkovich). Ela também cita outros, como Sofia Coppola (As Virgens Suicidas, Encontros e Desencontros), Sam Mendes (Beleza Americana) e os irmãos Wachowski (Matrix), entre outros, mas o foco são naqueles seis que ela considera os mais influentes e revolucionários no cinema dos 90.

Dividido em 13 capítulos, com apêndices e até uma "linha do tempo" dos fatos narrados no livro, Waxman mistura artigos de revistas e jornais especializados com centenas de entrevistas feitas por ela mesma com os envolvidos. Há muitos detalhes dos bastidores e do processo raramente saudável de se fazer um filme. Assim como em "Easy Riders", há também grande quantidade de fofoca sobre diretores e produtores, geralmente envolvendo sexo e/ou drogas. Há também um ponto de vista mais feminino, claro, que o livro de Peter Biskind. Waxman gosta de falar sobre as mães, namoradas e esposas dos envolvidos, para mostrar as mulheres por trás dos homens por ela descritos.

A "estrela" do livro, de certa forma, é Quentin Tarantino. Foi ele quem, para o bem ou para o mal, nocauteou Hollywood com sua mistura de cultura pop com ultraviolência. Reconhecido pelos roteiros de "Amor à queima roupa" (True Romance, lançado em 1993) e "Assassinos por natureza" (Natural Born Killers, lançado em 1994), Tarantino conseguiu chamar a atenção do ator Harvey Keitel, que o ajudou a conseguir financiamento para "Cães de Aluguel" (Reservoir Dogs, 1992). O filme foi um sucesso inesperado, causando tanto admiração quanto repulsa por sua violência (por sua famosa cena em que Michael Madsen corta a orelha de um policial). Waxman descreve Tarantino como um rapaz sujo e pouco higiênico, pouco ligado a tomar banho ou se barbear. Ela também mostra como ele seria um sujeito traiçoeiro, pronto para esquecer dos amigos assim que chegou ao sucesso. Roger Avary, amigo de longa data, por exemplo, teria sido co-autor de grande parte do roteiro de "Pulp Fiction" (toda a trama envolvendo o boxeador de Bruce Willis teria sido criação de Avary). Como Tarantino queria que os créditos lessem "Escrito e Dirigido por Quentin Tarantino", o nome de Avary teria sido tirado dos créditos de roteiro e recebido apenas um crédito por "estória". Mas Waxman deixa evidente a genialidade de Tarantino como escritor de diálogos, mesmo que nem todas as as histórias fossem realmente dele.

Ganha também destaque no livro a disputa entre George Clooney, estrela da série médica "E.R." e o diretor David O. Russell, na produção de "Três Reis". Russell não gostava do estilo de interpretar de Clooney, mas precisava do apoio do astro para conseguir financiamento para o filme. A atuação de Clooney era questionada diariamente na frente de toda equipe, o que acabou causando atritos. Além disso, Russell seria extremamente cruel e tirânico, deixando de dar atenção a um figurante que teve um ataque epilético em cena. George Clooney teria ido ajudar o rapaz, o que causou uma briga no set de filmagem que chegou aos socos e gritos.

Steven Soderbergh é descrito como um "nerd" talentoso que se viu catapultado ao sucesso quando lançou seu pequeno filme "Sexo, mentiras e videotape", em 1989. O filme foi vencedor no Festival de Cannes e, de repente, Soderbergh era o diretor mais quente de Hollywood. Waxman, porém, o mostra como alguém que gosta de sabotar o próprio sucesso. Soderbergh seguiu "Sexo, mentiras e videotape" com bombas como "Kafka" (1991) ou "Schizopolis" (1996), um filme em que ele contava a história do próprio divórcio, tendo como atores ele próprio, sua ex-mulher e filha. Soderbergh voltaria ao sucesso no final da década de 90, quando lançou filmes como "Erin Brockovich" (que deu o Oscar a Julia Roberts) e "Traffic" (que deu a Soderbergh o Oscar de Melhor Diretor). "Traffic" começou com uma idéia desenvolvida pela produtora Laura Bickford, que queria adaptar para os Estados Unidos uma série britânica de mesmo nome. O filme sofreu diversas mudanças e passou pela mão de vários estúdios, que não queriam tocar no tema polêmico das drogas. Quando Soderbergh estava para fazer "Traffic" como um projeto pequeno pelo estúdio USA Films, Harrison Ford se interessou por um papel e, de repente, o filme se tornou de grande orçamento...somente para ver Ford desistir a um mês do início das filmagens. O papel acabou ficando com Michael Douglas.

São também interessantes as histórias sobre como "Clube da Luta", de David Fincher, custou 75 milhões de dólares e foi um fracasso enorme na bilheteria (para, depois, se tornar um sucesso "cult" nas vendas em DVD). A produção do bizarro roteiro de "Quero ser John Malkovich" também rende bons capítulos. E Paul Thomas Anderson mostra como conseguiu convencer os estúdios a aceitar que filmes como "Boogie Nights" e "Magnólia" fossem feitos.

"Rebels on the Backlot". Sharon Waxman. 386 páginas. Harper Perennial. Inglês.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Baarìa

O diretor italiano Giuseppe Tornatore tem treze longas-metragens em seu currículo, mas é conhecido mundialmente como "o diretor de Cinema Paradiso". De fato, sua homenagem ao cinema, produzido em 1988 e vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro é, merecidamente, sua obra mais conhecida. Mas são dele também o falho (mas belo) "O Homem das Estrelas" (1995), ou o tocante "Malèna" (2000), com Monica Bellucci. Tornatore não tem medo do espetáculo, da teatralização e da emoção, o que é um alívio nestes tempos de filmes frios e assépticos.

E assim chegamos a "Baarìa" (2009), seu filme mais autobiográfico. O nome vem de como os nativos chamam a cidade de Bagheria, próxima a Palermo, na Sicília. Poucas imagens poderiam ser mais nostálgicas do que a que abre o filme, uma terra vermelha, empoeirada, onde crianças brincam de girar piões de madeira. Tornatore, em um início um pouco atrapalhado, nos apresenta a família Torrenuova, o pai Ciccio (Gaetano Aronica), Nino (Salvatore Ficarra) e o mais novo, Peppino (Francesco Scianna). É um pouco difícil entender quem é quem, porque "Baarìa" conta quatro décadas da história da Itália e da família Torrenuova, com saltos sutis no tempo mostrando as mudanças nos personagens e na paisagem. É impressionante o cenário construído por Tornatore para recriar a pequena Bagheria desde antes da II Guerra Mundial até os dias de hoje. De forma bem italiana, quente, gritante, dezenas de personagens e figurantes passeiam pela rua principal da cidade, com a igreja ao fundo, nas diversas épocas retratadas pela obra.

O foco, no entanto, está em Peppino Torrenuova (o ator, Francesco Scianna, me lembrou muito um jovem Paulo Betti). De família pobre, Peppino é um simples pastor quando criança, e passa dias longe da família com o rebanho de cabras. Ele é apresentado à uma lenda local, três grandes rochas que saem da paisagem árida; dizem que quem conseguir atingir as três com uma pedra abrirá as portas para um rico tesouro enterrado. Ao final da II Guerra Mundial, quando o ditador Mussolini é morto pela população italiana, o tesouro de Bagheria é pilhado pelos habitantes da prefeitura da cidade. Peppino, desde criança, era contra o fascismo e é fascinado pelo Partido Comunista Italiano, ao qual se filia. Já adulto, Peppino, em cenas épicas orquestradas por Tornatore, invade com um grupo de "sem terras" siciliano a região da família Corleone, em uma tentativa de reforma agrária.

Há também um romance proibido. Peppino se apaixona por Mannina (Margareth Madè), que havia sido prometida a um príncipe local. Os dois armam uma "fuga" inusitada, trancando-se dentro da própria casa da família. Os dois eventualmente se casam em uma cerimônia conturbada (Peppino, comunista, não se entende com o padre local), mas com típico humor italiano.

É um filme longo, com quase três horas, e Tornatore não tem pressa. Os anos se passam e ele conta a história da Itália segundo o ponto de vista dos Torrenuova, os conflitos sociais, as manifestações em que Peppino está engajado e, eventualmente, sua carreira política. Há uma cena muito interessante quando, pela manhã, vemos Peppino sair de sua casa, à esquerda da rua, despedindo-se da esposa. À direita da rua vemos um policial do governo fazendo a mesma coisa. Os dois se cumprimentam cordialmente enquanto caminham para o que será, provavelmente, mais uma manifestação violenta.

Épico, emocionante, "Baarìa" fala sobre política, nostalgia, religiosidade, erotismo (Monica Bellucci, em uma cena curta), família e, principalmente, da passagem do tempo. A trilha é do mestre Ennio Morricone, verdadeira lenda do cinema italiano e mundial, e a bela fotografia de Enrico Lucidi. O filme sofreu críticas por ter sido produzido pela empresa "Medusa", que pertence a Silvio Berlusconi. Segundo artigo do crítico Luiz Carlos Merten, Tornatore dispensou as críticas e disse ter tido mais liberdade para fazer o filme do que os jornalistas ao criticá-lo.

"Baarìa" está em cartaz, em Campinas, no Topázio Cinemas.


domingo, 10 de outubro de 2010

Tropa de Elite 2 - O inimigo agora é outro

"Tropa de Elite" (2007) foi um fenômeno do cinema brasileiro. Uma cópia com uma montagem temporária vazou, foi parar nas bancas dos camelôs e vendeu milhares de DVDs piratas. Antes mesmo do lançamento oficial, o filme já estava na boca do povo, que incorporou bordões como "pede pra sair!". O fenômeno não parou por ai. Os temas incendiários tratados pelo roteiro do diretor José Padilha se tornaram motivo de debates acirrados, teses acadêmicas e assunto para programas de televisão. A figura de um homem vestindo o uniforme preto do BOPE se tornou um herói inesperado, o "Capitão Nascimento", um policial incorruptível com métodos questionáveis de abordar os "vagabundos" da favela. Nascimento, incorporado por Wagner Moura, era honesto e matava com a mesma frieza policiais corruptos, traficantes de drogas e, a bem da verdade, qualquer um que ele julgasse estar do lado errado da lei. Em um país carente de justiça como o Brasil, a figura de Nascimento se tornou um modelo de conduta que podia ser torto e discutível, mas era considerado eficiente.
O agora Coronel Nascimento está de volta. "Tropa de Elite 2" tem todos os ingredientes que fizeram do primeiro filme um sucesso. Qualidade técnica inquestionável, elenco empenhado e grande dose de polêmica. José Padilha poderia, se quisesse, ter ido pelo caminho fácil e explorado a imagem do BOPE como em uma série de televisão americana, com seus membros participando de aventuras e passando por perigos nas favelas do Rio de Janeiro. Mas Padilha volta disposto a mostrar para todos os desavisados que o problema criminal na cidade carioca (e em todo o Brasil) é maior e mais perverso do que se imagina.
Dez anos depois dos acontecimentos do primeiro filme, Nascimento e sua "cria" no BOPE, o Capitão Matias (André Ramiro), estão se preparando para invadir o presídio Bangu I, que está em chamas. Nascimento é novamente o narrador do filme, soltando frases polêmicas como "o homem dos Direitos Humanos é quem vagabundo chama quando fez merda". De fato, em Bangu I os detentos estão se matando e fizeram dois policiais reféns. Nascimento está com o governador do Rio no celular, pedindo a chance de matar as lideranças do tráfico que estão trancafiadas ali. O governador responde que "não quer outro Carandiru". É então que chega a pedra no sapado de Nascimento, o professor de História, esquerdista e membro da organização "Human Rights Aid", Fraga (Irandhir Santos). Assim como no primeiro filme, um tiro se mostra fundamental para a trama. Em "Tropa de Elite", Neto (Caio Junqueira) dava o tiro certeiro que matava um traficante em um ponto chave do filme. Em "Tropa 2" é André Matias que, contrário às ordens de Nascimento, executa o líder da rebelião durante uma situação de refém.
O fato faz com que Nascimento seja demitido "para cima". Ele é exonerado do BOPE para ser assistente da Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro. É de lá que ele planeja sua "luta contra o Sistema". "Tropa de Elite 2" não faz rodeios ao tratar dos problemas sérios que envolvem as polícias civil e militar do Rio de Janeiro, o BOPE, os políticos, traficantes e as milícias armadas. O roteiro é um labirinto denso e complicado envolvendo todas estas frentes. Há um ar de "filme de tese" ainda maior nesta continuação de "Tropa de Elite". É como se Padilha não quisesse mais que os espectadores, críticos e intelectuais confundissem seus personagens com heróis. É uma tarefa complicada. Padilha se utiliza dos mesmos recursos técnicos e da linguagem cinematográfica desenvolvidos por Hollywood para originalmente gramourizar seus temas. Às vezes fica difícil ver crítica nas cenas em que o BOPE, altamente técnico e especializado, invade uma favela com dezenas de homens, helicópteros e o "Caveirão", o carro blindado que é símbolo da corporação, para matar a maior quantidade de "vagabundos", os traficantes, possível.
Mas Padilha vai mais fundo. Ele mostra como a favela é um organismo vivo, que precisa de suprimentos para se alimentar. O massacre produzido pelo BOPE deixa a favela aberta para que policiais corruptos tomem o lugar dos traficantes e criem milícias armadas. O papel da mídia sensacionalista também é explorado. Fortunato (André Mattos) é um apresentador de televisão claramente baseado em Datena, com sua atuação teatral diante das câmeras, clamando por "justiça" e pela morte dos bandidos. Na verdade Fortunato está ligado às milícias que exploram as favelas. Há também citação aos bons jornalistas como no trágico caso de Tim Lopes, morto por traficantes durante uma reportagem. Nascimento tem que lidar com a ex-mulher e com o distanciamento do próprio filho, que o vê como um assassino. Fraga, um adversário constante, pode se tornar um aliado na cruzada por justiça de Nascimento.
Padilha termina seu filme com uma daquelas cenas que, novamente, se apropriam do cinema comercial americano, quando o herói vai a público contar a "verdade". O discurso do Coronel Nascimento ao final de "Tropa 2" provavelmente enojaria o Capitão Nascimento do primeiro filme. José Padilha e Wagner Moura, assim, deixam clara sua tese, da qual não escapa quase ninguém. A câmera voa então até Brasília, e a implicação é clara.
É, parceiro, quem disse que a vida é fácil? (visto no Topázio Cinemas).