sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Você vai conhecer o homem dos seus sonhos

Shakespeare diz em uma de suas peças (Macbeth) que a vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, e que não significa nada". É assim que Woody Allen começa seu mais novo filme. Escrever sobre Allen, assim como ver um filme dele, é um prazer. O diretor veterano se mantém tão ativo que muitos o acusam de estar decadente. Na verdade seus filmes ainda estão bem acima da média da bobagem que tem povoado as telas recentemente. Sim, há uma espécie de "fórmula" para um filme de Woody Allen. Homens e mulheres com problemas conjugais, diálogos irônicos, jazz na trilha sonora e a sensação de que o mundo é feito de peças de teatro, óperas, galerias de arte e conversas sobre o ato de escrever. Só que em meio a este mundo aparentemente fora da realidade há espaço para pequenos e grandes dramas humanos, cheios de som e fúria, significando a vida e a morte para seus protagonistas, mas nada no esquema geral do mundo.

Helena (Gemma Jones) é uma senhora que perdeu o "chão" quando o casamento de 40 anos terminou. O ex-marido, Alfie (Anthony Hopkins), se assustou com a idade e caiu naquele padrão patético do idoso que deixa a esposa e passa a frequentar academias de ginástica e sair com garotas de programa. Helena vai buscar consolo em uma vidente chamada Cristal (Pauline Collins), que logo na primeira sessão vê "ondas coloridas positivas" indo na direção de Helena. Claro que ela é uma charlatã, mas ao menos é mais pessoal que os psiquiatras que tratavam de Helena antes, com frieza e remédios.

Helena é mãe de Sally (Naomi Watts), que trabalha em uma galeria de arte chefiada pelo atraente Greg (Antonio Banderas). Sally é casada com um americano, Roy (Josh Brolin), que já foi um escritor de sucesso. Incapaz de escrever um livro bom novamente, Roy passa o dia espiando e "buscando inspiração" na vizinha do outro lado da rua, a indiana Dia (Freida Pinto). A garota é violonista clássica e está noiva de um rapaz que está sempre viajando.

Allen, com seu talento habitual, cruza e descruza o caminho destas pessoas pelas ruas de Londres. Sally se apaixona pelo chefe espanhol, que aparentemente está interessado nela. Alfie se casa com uma prostituta chamada Charmaine (Lucy Punch, a personagem mais caricata do filme), que obviamente só está interessada no dinheiro dele. O novo livro de Roy é rejeitado pela editora e um de seus amigos, também escritor, sofre um grave acidente e fica em coma. Só que, antes do acidente, ele havia deixado o manuscrito de um ótimo livro para Roy ler, e Roy começa a imaginar se o amigo vai acordar um dia ou não. Todos estes personagens tem que lidar com a fascinação de Helena pela vidente e por sua recém descoberta "espiritualidade". Helena consulta Cristal regularmente e acredita piamente em todas as visões da charlatã.

A trama lembra o extraordinário "Interiores", filme extremamente sério que Allen escreveu e dirigiu em 1978. Aquele filme também lidava com uma mulher cujo marido a havia abandonado e sua filha com problemas no casamento com um escritor. Talvez o tempo tenha mostrado a Allen que tudo isso, no final, não "significa nada" e ele resolveu fazer uma comédia sobre o mesmo assunto. Para os cinéfilos, um filme de Woody Allen sempre significa alguma coisa, e este não é exceção.


segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Senna

Sexta-feira, 29 de abril de 1994, Grande Prêmio de San Marino, Itália. O jovem Rubens Barrichello voa em uma zebra durante o treino classificatório em um acidente espetacular, do qual sai ileso. No sábado, dia 30, Roland Ratzenberger não teve a mesma sorte. Um acidente grave custou-lhe a vida, e uma sombra negra pairou sobre o "circo" da Fórmula 1. Um dos mais afetados foi um brasileiro chamado Ayrton Senna da Silva, 34 anos, três campeonatos mundiais e um ícone do esporte. Ele havia trocado a equipe Mclaren pela Williams, não estava enturmado com a equipe de engenheiros e, o mais grave, não estava em paz com o carro. Mudanças no regulamento haviam proibido as inovações eletrônicas que haviam dado o quarto campeonato mundial a Alain Prost no ano anterior, e nem a habilidade de um piloto como Senna conseguiam manter a Williams na pista. No domingo, primeiro de maio, a tragédia.

O grande prêmio deveria ter sido suspenso devido à morte de Ratzenberger? Senna, inseguro, deveria ter desistido de correr? Se ele não tivesse saído da Mclaren, seu destino seria outro? Estas perguntas ficam na cabeça do espectador depois de assistir ao documentário "Senna", dirigido por Asif Kapadia para a produtora inglesa Working Title. O documentário é todo feito a partir de imagens de arquivo, em um ótimo trabalho de seleção e edição. Vozes em off completam o filme, com depoimentos da família de Senna e de pilotos e comentaristas da Fórmula 1, como Reginaldo Leme. Há cenas muito boas cedidas pela família ou recuperadas por televisões do mundo todo, muitas delas providenciadas pela Rede Globo. O arquivo pessoal da família mostra imagens de Senna muito jovem, em 1978, competindo de kart na Europa e já chamando a atenção do mundo. Senna diz que era competição pura, sem politicagens ou dinheiro, problemas que ele teria que enfrentar depois na F1.

Grande ênfase é dada ao relacionamento conturbado que Senna teve com seu companheiro de equipe na Mclaren, Alain Prost. O "professor", como era conhecido, era um mestre em tirar vantagem tanto do carro quanto na política envolvida no esporte. Em especial sua ligação com Jean-Marie Balestre, também francês, que dirigia a Federação Internacional de Automobilismo. Se o filme fosse feito no Brasil, provavelmente teria sido dado destaque também à relação não muito amigável entre Senna e Nelson Piquet. Os dois foram explorados pela imprensa como lados opostos da mesma moeda, Senna era o "bom" e Piquet era o "mau". Quando hoje se vê Rubens Barrichello, bom piloto mas simples pelego de equipes como Ferrari, que mandavam e desmandavam nele, é difícil lembrar como eram competitivos pilotos como Ayrton Senna e Nelson Piquet. Piquet podia não ser tão genial quanto Senna dentro de um carro, mas também foi tri-campeão mundial e era arrojado como ninguém. Senna acabou levando a fama de "bom moço", era muito mais acessível e ficou conhecido por seus trabalhos filantrópicos. Mas o documentário mostra que, nas pistas, ele também não era nenhum "santo". Após ter perdido o campeonato mundial para Prost em 1990, no Japão, após uma manobra discutível do francês e pela politicagem da FIA, Senna não teve dúvidas; no ano seguinte, jogou seu carro contra Prost, também no Japão, e venceu seu segundo campeonato mundial.

O que vemos em "Senna" é o retrato de um homem obcecado pela velocidade e pela vitória. É impressionante ver como os carros da sua época eram guiados realmente pelo piloto manualmente, e não por "controle remoto" dos boxes, como é praticamente feito hoje. O câmbio ainda era mecânico, por exemplo, e nas câmeras colocadas no carro podemos ver Senna "voando" pelas ruas estreitas de Mônaco, pilotando com a mão esquerda (ele era canhoto) e mudando as marchas com a direita. Pilotar era sua paixão e seu objetivo era vencer. O documentário traz cenas incríveis das ultrapassagens de Senna, seu trabalho de recuperação quando largava mal e feitos como quando venceu o Grande Prêmio do Brasil tendo apenas a sexta marcha funcionando.

Felizmente, o documentário não tenta endeusar o homem. As conquistas de Senna falam por si em imagens de suas vitórias dentro e fora das pistas. E, claro, quando ele está dentro da Williams, rosto triste e conturbado, esperando a corrida começar em Ímola, temos vontade de lhe dizer para sair do carro e ir para casa. Senna acabou sendo vítima da própria obsessão. Muito se fez para tentar culpar a equipe Williams, dos mecânicos ao próprio Frank Williams, pela morte de Ayrton Senna. Mas isso é bobagem. Quanto mais o carro o desafiava, mais ele tentava conquistá-lo. Senna morreu porque foi, até o último minuto, um piloto de corrida.


terça-feira, 2 de novembro de 2010

A Suprema Felicidade

Uma aluna de jornalismo de 18 anos, ao ler um texto meu em que me referia ao "cineasta e jornalista Arnaldo Jabor", me perguntou: "Cineasta?". Para os mais novos, Arnaldo Jabor é sinônimo de jornalista, de crônicas apimentadas, polêmicas, de humor sarcástico e cínico. Os um pouco mais velhos lembram de Jabor como o cineasta de "Toda nudez será castigada" (1973, vencedor do Urso de Prata em Berlim) ou "Eu sei que vou te amar" (1986, que deu a Fernanda Torres o prêmio de Melhor Atriz em Cannes). Jabor se tornou colunista e cronista nos anos 1990, depois que a extinção da Embrafilme pelo governo Collor causou a queda brusca da produção cinematográfica brasileira.

Ele volta para trás das câmeras com "A Suprema Felicidade", que tem muitos dos cacoetes do cinema nacional pré-retomada (movimento iniciado com "Carlota Joaquina", em 1995), como cenas de nudez gratuitas, interpretações tendendo ao teatral e problemas de roteiro. Autobiográfico, "A Suprema Felicidade" fala sobre a vida de Paulo, um rapaz que cresce no Rio de Janeiro nos anos 50 e 60. Já a primeira cena do filme mostra uma cena de sexo entre Marco (Dan Stulbach) e Sofia (Mariana Lima) pais de Paulinho aos 8 anos (Caio Manhente). É das poucas cenas felizes entre o casal, que passa grande parte do filme brigando por problemas típicos da metade do século XX, como o machismo, a bebida e as relações fora do casamento. Marco é um aviador que sonha em voar com jatos e que conheceu a mãe de Paulinho em um baile, em 1939. As interpretações de Stulbach e Mariana Lima são exageradas. Há algumas cenas que não funcionam, como quando Stulbach ralha com o filho por não estar segurando a colher direito, no jantar, sendo que o garoto sequer estava com a colher na mão. Em uma cena de ciúme, ele rasga a alça do vestido da esposa, que fica com os seios à mostra da família e do próprio filho, chorando, por um longo tempo, sem se cobrir.

Jabor tenta mostrar os problemas do machismo no século XX com este casal, mas é importante dizer que a mãe de Paulo é das poucas mulheres a aparecer em cena que não são, ou foram, prostitutas. A avó de Paulo (Elke Maravilha, imaginem) era uma dançarina de cabaré quando o avô (Marco Nanini), um músico, a conheceu e se apaixonou. Nanini é, de longe, a melhor parte do filme. Seu personagem, mesmo que um pouco caricato, é a alma da história. Ele está ótimo como um boêmio que já viveu muito, viu de tudo e tem sempre bons conselhos para dar para o neto. É sem dúvida a melhor interpretação do filme, e merecia até mais espaço.

O resto da história é dedicada a um olhar nostálgico sobre um Rio de Janeiro sem traficantes de drogas ou policiais do BOPE. Mas será que era tão bom assim? No colégio, os padres ficavam contando histórias sobre o inferno para os estudantes que praticassem o "vício solitário". Michel Joelsas, que foi o garoto em "O ano que meus pais sairam de férias" (2006) interpreta Paulo aos 13 anos e Jayme Matarazzo aos 19. Há nostalgia também da "malandragem" carioca, das frases de duplo sentido ensinadas pelo pipoqueiro aos meninos e dos carnavais de rua. Mas é como se os personagens soubessem que estão em um filme. Há duas cenas que misturam sonho e realidade, uma em que dezenas de dançarinos invadem a rua em uma espécie de musical, e outra envolvendo várias prostitutas se exibindo em um casarão da Lapa. É assim que Paulo tem contato com as mulheres. Há uma sequência bastante bizarra envolvendo Maria Flor, que interpreta uma garota espírita que psicografa cartas da mãe morta. As flores do vestido, os quadros na parede e a alta torre remetem, sem motivo aparente, a "Um Corpo que Cai" (1958), filme de suspense de Alfred Hitchcock. Há também a "prostituta virgem" Marilyn (Tammy di Calafiori, lembrando muito Scarlett Johansson), agenciada pela própria mãe (Maria Luisa Mendonça, também bizarra). A garota é primeiro assediada pelo pai de Paulo, depois pelo próprio, que a paga para ser sua "namorada".

Longo (125 minutos) e episódico, "A Suprema Felicidade" tem bela fotografia de Lauro Escorel e direção de arte de Tulé Peak. Há várias boas sequências intercaladas por outras desnecessárias. Fica claro o calor de Jabor (expresso em suas crônicas) em fazer o filme, mas ele poderia ser menos irregular.