segunda-feira, 23 de junho de 2008

Agente 86

Apesar de haver várias críticas ruins à versão cinematográfica da série de TV "Agente 86", o filme é bastante satisfatório. "Get Smart" foi criada em 1965 por Mel Brooks e Buck Henry, e era uma paródia dos filmes de James Bond. Estrelada por Dom Adams (agente 86), Barbara Feldon (agente 99) e Edward Platt (o Chefe), a série continha algumas das melhores piadas da história da televisão, era bem escrita, não apelativa e gostosa de se ver. Nessa fase pouco criativa pela qual passa o cinema americano (tomado por continuações, refilmagens e versões de sucessos da TV), era de se esperar que Maxwell Smart acabaria chegando à telona mais cedo ou mais tarde. Boatos a respeito deste filme circulavam há anos e a idéia, a bem da verdade, não me atraia muito. A chance de estragarem o charme da antiga série eram grandes e havia um grande problema: quem iria substituir Dom Adams como o Agente 86? Em 1998 Jim Carrey foi anunciado para o papel, mas o filme não foi adiante. Agora, dez anos depois, ele finalmente sai da gaveta com Steve Carell (de "O Virgem de 40 Anos" e "Todo Poderoso").

Carell consegue ser muito engraçado, apesar da cara aparentemente séria e "certinha" o tempo todo. Ele foi boa escolha porque Dom Adams também levava seu personagem a sério, e é isso que causava as maiores gargalhadas. Vários dos elementos da série original estão no longa metragem; nem todos funcionam direito. O "cone do silêncio", por exemplo, rendia as melhores risadas da série por nunca fazer o que devia. O original era feito de plástico e descia sobre as cabeças dos atores, que não conseguiam escutar o que o outro estava falando. No filme, o cone do silêncio recebeu um "upgrade" digital desnecessário e não tem tanta graça. Estamos em pleno século XXI e a Guerra Fria faz parte do passado, mas a organização criminosa KAOS ainda existe, assim como sua contrapartida, o CONTROLE. O filme reproduz a tradicional abertura da série, em que Maxwell Smart passa por um longo corredor cheio de portas que se abrem e fecham, até o elevador escondido na cabine telefônica. Maxwell Smart ainda não é um agente, mas um analista que prepara relatórios de inteligência enormes, que ninguém lê. O Chefe é interpretado por Alan Arkin, e a Agente 99 por Anne Hathaway. Quando todos os agentes do CONTROLE estão na mira da KAOS, Smart é promovido e enviado com 99 para a Europa, para tentar desmantelar uma operação que pretende ameaçar o mundo com armas nucleares.

Steve Carell faz um Agente 86 mais inteligente que o criado por Dom Adams. Apesar de bastante atrapalhado, suas análises costumam estar certas e o filme mostra que o CONTROLE não conseguiria sobreviver sem Smart. Achei curiosa essa escolha do roteiro em mostrar um Agente 86 mais "eficiente" do que o original. Apesar disso, há vários momentos hilariantes de humor físico em que as trapalhadas de Smart provocam gargalhadas na platéia, como quando ele tenta se soltar de algemas usando dardos de um canivete suíço, ou um engraçado duelo de dança com 99 em um baile.

Mais para o final o filme tende a se arrastar um pouco. Há uma curiosa homenagem a "O homem que sabia demais", de Hitchcock, no modo como os vilões pretendem detonar sua bomba em um concerto em Los Angeles. O elenco conta também com a presença de Dwayne Johnson (ex "The Rock"), bastante engraçado, e Terence Stamp como o vilão Sigfried.

Abertura da série original:


trailer do filme atual:


domingo, 15 de junho de 2008

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Fim dos Tempos

A musa criativa parece ter abandonado M. Night Shyamalan nos últimos anos. O diretor, roteirista e produtor que surgiu praticamente do nada para uma indicação ao Oscar e grande sucesso com "O Sexto Sentido", em 1999, vem acumulando uma série de fracassos. Gostei bastante dos filmes que seguiram "O Sexto Sentido", como "Corpo Fechado" (Unbreakable, 2000) e "Sinais" (Signs, 2002). Shyamalan mostrava criatividade nos roteiros e grande domínio no terreno dominado pelo mestre Alfred Hitchcock, o suspense. "Sinais", principalmente, é um filme feito praticamente só de suspense, baseado em boas interpretações e um belo roteiro. Com "A Vila" (The Village, 2004), o namoro do diretor com público e crítica começou a se romper. Eu acho a primeira parte do filme magnífica, com ótimas interpretações, grande suspense e maravilhosa trilha de James Newton Howard. Mas a parte final desagradou a muita gente, com certas "surpresas" reveladas de forma capenga e um final duvidoso. Mas as críticas tocaram forte no diretor e ele resolveu se "vingar" com seu próximo filme, "A Dama da Água" (Lady in the Water, 2006), em que abertamente ataca os críticos de cinema criando um personagem caricato e, mostrando falta de modéstia, escalando a si mesmo para um dos papéis mais importantes (ou auto-importantes) do filme. Foi mais um fracasso.

E então eu vi o cartaz acima e pensei, "opa, ele está de volta". Lembra muito o cartaz de "Contatos Imediatos do Terceiro Grau", não? Pois é, mas o filme está longe disso. Todos os elementos de um "filme de Shyamalan" estão presentes: há o herói relutante e solitário vivido por Mark Wahlberg; há a esposa meio fria e distante, Alma (interpretada por Zooey Deschanel); há "algo" excepcional acontecendo no mundo, mas isso é visto pelo ponto de vista de um universo pessoal, e assim por diante. Sem motivo aparente, as pessoas que passeiam pelo Central Park, Nova York, em uma bela manhã começam a agir de forma estranha e a se matar. Operários da construção civil despencam, aos montes, dos prédios para as ruas lá embaixo. Guardas de trânsito se matam com as próprias armas, e assim por diante. Os noticiários atribuem o fato a um ato terrorista e as notícias logo chegam aos ouvidos de Elliot Moore (Wahlberg), um professor de ciências da Filadélfia. As autoridades recomendam a evacuação em massa das grandes cidades e ele parte de trem com a esposa, um colega da escola e sua filha para o interior. Mas a "praga" começa a se espalhar para as cidades vizinhas e logo para toda área nordeste dos Estados Unidos. A premissa seria interessante para um episódio curto de "Além da Imaginação", mas é um pouco fraca para manter a atenção em um filme de longa metragem. Como a "ameaça" é invisível, Shyamalan tentou dar a ela a forma de um vento que apenas agita as folhas das árvores por onde passa, mas o resultado não é muito eficiente.

E ele insiste em criar pequenos "incidentes" no roteiro que serviriam para humanizar os personagens mas que, no fundo, apenas tiram o foco da história e soam, a bem da verdade, um pouco ridículos. Por exemplo, a esposa de Elliot não só sofre de algum tipo de paranóia e síndrome de pânico, mas também recebe ligações misteriosas no celular de um tal de "Joey" que, no fundo, foi apenas um colega de trabalho com quem ela jantou uma vez. Para que criar esta história paralela se ela não vai ser aproveitada pelo roteiro? E o que dizer de outra história paralela lançada no início do filme, de que as abelhas teriam simplesmente desaparecido sem deixar vestígios?

Há certas cenas criadas com o objetivo de fazer rir mas que provocam o efeito contrário. Mark Wahlberg, por exemplo, tenta convencer um homem dentro de uma casa que ele é "real" cantando uma musiquinha sem motivo aparente. Em outra cena, acredite, ele começa a conversar com uma planta. E para quem criou personagens infantis tão interessantes em O Sexto Sentido, Corpo Fechado e Sinais, Shyamalan poderia ter se esforçado mais no personagem da garotiha adotada por Elliot e a esposa.

Assim, "Fim dos Tempos" até que começa bem, mas vai se esvaziando e ficando cada vez mais sem sentido conforme vai chegando ao fim. Mark Wahlberg se revela limitado no papel que poderia ter ficado melhor nas mãos de Joaquin Phoenix, por exemplo, com quem Shyamalan trabalhou em "Sinais" e "A Vila". Quanto ao diretor, talvez ele ainda tenha liberdade criativa dos estúdios para fazer seus filmes porque, provavelmente, eles custem relativamente pouco para serem produzidos. "Sinais" foi feito praticamente todo em uma só locação, e "O Fim dos Tempos" é passado quase todo com apenas alguns atores em campos neutros no interior dos Estados Unidos. Para quem depende tanto de um bom roteiro, Shyamalan precisa voltar aos bons tempos.
ps: tem muita gente, eu inclusive, confundindo o título brasileiro do filme. O certo é "Fim dos Tempos", e não "Fim dos Dias", que é um filme com o Swarzenegger.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Pecados Inocentes


O início de "Pecados Inocentes" me fez lembrar da frase atribuída ao pensador Rousseau, que declarou que os homens nascem bons, é a sociedade que os corrompe. O narrador nos informa que ele é o sorridente bebê que vemos em cena, fruto do fogo que é sua mãe, Barbara, e do gelo que é seu pai Brooks (Stephen Dillane). Bárbara é interpretada por Julianne Moore em uma daquelas performances que são maiores (e talvez melhores) que o próprio filme. Ela é uma mulher que se casou pelo dinheiro de Brooks Bakaeland, herdeiro do inventor da "Bakelita", um tipo de plástico que trouxe fortuna à família. Bárbara é um furacão de emoções contraditórias e gosta de ser o centro das atenções. Ela ama seu bebê mas, ao sair para uma reunião no famoso Stork Club, em Nova York, fica ensaiando como é que vai se referir a ele para as outras pessoas. "Devo chamá-lo de Anthony ou de Tony?". Ela mantém cartões de visitas de famílias ilustres, como os Duchamp, à vista na entrada das várias casas em que a família mora com o passar dos anos. O filme se passa de 1946 a 1972 em cidades como Nova York, Paris e Londres, além do litoral quente da Espanha.

Tony, o filho, vai crescendo sob a influência sempre presente da mãe, que o mima e o treina para se comportar bem diante dos convidados. Brooks, o pai, tem aquele ar cansado de quem precisa de um momento para si mesmo. Ele venera a história da família, principalmente o avô, e tenta lidar com as mudanças de humor da esposa, sem sucesso. Há uma cena forte em que, como que se vingando de Bárbara, o filme mostra Brooks fazendo sexo anal com ela, violentamente. O diretor de "Pecados Inocentes" (Savage Grace, 2007) é Tom Kalin, que faz do filme um espetáculo curioso. A produção é impecável e ele é todo tomado por cores fortes, bela fotografia ao ar livre e um bom elenco. Mas é tudo aparência. Por baixo, o mundo cheio de dinheiro dos Bakaelend está claramente com problemas. Tony cresce e se transforma em um jovem (interpretado por Eddie Redmayne) que é culto, rico e bonito, mas que ainda sofre com a influência de Bárbara e com a indiferença de Brooks. Na Espanha ele até tenta se envolver com uma bela garota chamada Blanca (Elena Anaya), mas sua opção sexual é claramente outra. Para complicar, o pai Brooks vê em Blanca uma chance de mudar de vida e se separa de Bárbara para morar com ela.

O filme é tão bonito plasticamente e a interpretação de Julianne Moore tão forte que fica difícil julgar se "Savage Grace", por si só, é um bom filme ou não. O diretor não tem pudores em mostrar cenas de nus masculinos e femininos ou cenas de homossexualismo. Julianne Moore atrai tanta atenção que a função de Anthony na trama fica diminuida mas, perto do final, seus problemas se tornam mais evidentes. A relação com a mãe é tão próxima que não tem barreiras, sejam mentais ou físicas (como em uma cena edipiana de sexo que pode chocar muita gente). Confesso que não sabia que o roteiro é baseado em uma história real (tirada do livro de Nathalie Robins e Steven M. L. Aronson) sobre um crime chocante que ocorreu em 1972. O filme é interessante e bem feito. Mas não é daquele tipo para sair "contente" do cinema.

trailer abaixo (cuidado, contém spoilers):


domingo, 8 de junho de 2008

Edifício Master

"Edifício Master" venceu o prêmio de melhor documentário no Festival de Gramado de 2002. O diretor é Eduardo Coutinho, diretor de "Peões", documentário "irmão" de "Entreatos", de João Moreira Salles, que acompanhou a campanha de Lula à presidência, "Jogo de Cena" (que brinca com a questão realidade/ficção em um documentário), entre vários outros.

"Edifício Master" é um prédio no Rio de Janeiro que fica a um quarteirão da famosa Praia de Copacabana. Era de se esperar que um endereço tão "nobre" abrigasse apenas classe média alta mas o documentário serve para desmistificar muitas ilusões. O prédio abriga mais de duzentos apartamentos conjugados, com uma população de aproximadamente quinhentas pessoas, de todos os tipos. E é desta diversidade que Coutinho se serve para retratar o que é o coração deste documentário: os habitantes. O filme não é sobre o prédio, mas sobre o ser humano. O filme é formado por uma série de entrevistas francas dos mais variados tipos ao próprio Eduardo Coutinho que, com sua fala tranquila e perguntas certas, consegue retirar confissões impressionantes dos moradores. Engraçado como a presença da câmera não intimida os entrevistados. Diria até que o contrário acontece; a chance (e até a necessidade) de expressão destas pessoas é tão importante que elas se abrem para declarar ressentimentos reprimidos, idéias e desejos. Há um casal de idosos que, na superfície, parece estar bem, mas quando a entrevista começa a mulher começa a falar dos problemas de relacionamento que vêm acontecendo. Ela diz que não é ciumenta mas reclama do fato do companheiro ficar olhando para outras mulheres na rua. Cita também uma tentativa de suicídio (tema recorrente no documentário, como se vê em outras entrevistas) e os quinze abortos que já fez. Já um outro casal idoso é a imagem da felicidade. Juntos há treze anos, os dois se conheceram através de anúncios e estão muito bem.

Outro tema que se repete é o da gravidez adolescente. Há uma garota que veio de Belo Horizonte que conta que não teve infância, pois engravidou aos 14 anos, do primeiro homem que teve na vida. Ela conta como foi reprimida pelo pai superprotetor e como, hoje, vive como garota de programa. Ela fala do assunto de forma extremamente franca, até surpreendendo Coutinho. Diz que o trabalho é "nojento" e que tem que beber todas as noites para conseguir realizá-lo, mas que faz isso porque tem que sustentar a filha. Do outro lado do espectro, há o depoimento de uma jovem bonita e de classe alta que também engravidou cedo e foi expulsa pelo pai do apartamento grande em que morava para ir para o Master. Ela diz que no início o apartamento era "claustrofóbico", mas que hoje é sua casa. Diz também que, se pudesse, isolaria acusticamente o apartamento porque não aguenta a invasão sonora que vem dos outros moradores o tempo todo.

Há os artistas, como uma banda formada por dois músicos e um... quem é aquela figura? O terceiro membro do grupo fica o tempo todo parado, mudo, vestindo uma capa de chuva amarela e uma espécie de capacete extraterrestre. Há uma "apresentação" apaixonada "My Way", com Frank Sinatra, de um morador que já morou nos Estados Unidos e que hoje vive da pensão que recebe de lá. Há também uma professora de inglês que, apesar de bem articulada, não consegue encarar Coutinho nem a câmera durante a entrevista. Timidamente, ela recita uma poesia sua em inglês e mostra um quadro que pintou. Falando em quadros, uma pintora gosta de criar paisagens que vê pela janela, mas que são geograficamente "incorretos".

Coutinho não segue a cartilha "tradicional" do audiovisual em seus documentários. Ele tem horror aos "inserts", que são imagens usadas normalmente para exemplificar ou ilustrar alguma coisa que o entrevistado está dizendo. Nos comentários em áudio do DVD, um produtor puxa a orelha de Coutinho por não mostrar os retratos que uma senhora cita repetidamente em sua entrevista, mas Coutinho diz que isso não faz seu gênero. Como editor de imagens, confesso que também senti falta delas para ilustrar vários dos depoimentos, mas o resultado é muito interessante. Coutinho não quer fazer o óbvio, como mostrar uma cena da praia quando alguém está falando sobre a praia. O documentário é sobre as pessoas e suas histórias, e não sobre imagens. Edifício Master sequer tem uma tomada externa do edifício, o que é surpreendente e até revolucionário. Mesmo a ordem das entrevistas não segue uma lógica tradicional. O DVD, aliás, trás o recurso de assistir às entrevistas em ordem aleatória, criando novos documentários a cada exibição. O que fica de "Edifício Master" é a diversidade humana frente à vida, à morte e o fantasma cada vez mais presente da solidão. E o outro solitário pode esta apenas à distância de uma parede.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

O Sonho de Cassandra



"O Sonho de Cassandra" é mais um filme da "fase britânica" de Woody Allen. O diretor, famoso por seus filmes passados em Nova York, nos últimos anos se apaixonou por Londres e fez filmes como o bom "Machpoint" (2005) e "Scoop" (2006), que eu não assisti. Allen tem seus altos e baixos, lançando um filme novo praticamente todos os anos. É de certa forma reconfortante ver um filme que comece simplesmente mostrando os créditos (de forma simples, letras brancas em fundo preto), característica dos filmes de Allen. A equipe e elenco impressionam, como a fotografia do veterano Vilmos Zsigmond ou a trilha sonora característica de Philip Glass. No elenco, dois grandes atores, Ewan McGregor e Colin Farrell são Ian e Terry, irmãos que compram um pequeno veleiro no início do filme e o batizam de "O Sonho de Cassandra". O nome veio de um cachorro que Terry, jogador inverterado, apostou nas corridas. "Cassandra", assim me lembra a Wikipedia, vem da mitologia grega; o deus Apollo lhe deu o dom da profecia por causa de sua grande beleza, mas ela não retribuiu seu amor. Ela assim recebeu a maldição de que ninguém acreditaria em suas previsões (como a queda de Tróia, por exemplo), e teria enlouquecido.

Ian e Terry estão sempre no limite entre o risco e a malandragem. Terry (Farrell) está sempre devendo dinheiro a alguém por causa de suas apostas em corridas ou jogos de pôker. Ian (McGregor) é boa pinta e empreendedor, mas sempre sonha alto demais e engana suas namoradas usando carros esportes que ele empresta da oficina de Terry. Uma destas garotas é Angela (Haylay Atwell), uma bela atriz de teatro que aparentemente faria de tudo para conseguir um grande papel em Hollywood. O filme começa bem, mostrando as malandragens dos irmãos e sua complicada relação com os pais. A mãe (Clare Higgins, muito bem) está sempre ralhando com o pai e falando bem de um tal de "tio Howard", que seria um parente rico dono de hotéis e restaurantes em vários países do mundo. Os diálogos de Allen são interessantes e o filme, até aqui, é dirigido de forma impecável. Há uma cena curiosa (e muito bem fotografada) em que os irmãos levam as namoradas para passear no veleiro e eles estão cantando "Show me the way to go home", que remete diretamente ao clássico "Tubarão" (1975), de Steven Spielberg. Em outras palavras, algo muito errado está para acontecer, e rápido.

O problema é que o filme, de repente, perde um pouco o foco justo quando o misterioso "tio Howard" (ninguém menos que Tom Wilkinson) entra em cena. Tudo apontava para a chegada de mais um trambiqueiro, mas não é o que acontece. Aparentemente Howard é mesmo rico e bem sucedido, mas ele tem um problema. Um sócio está para testemunhar contra ele no tribunal e isso pode enviá-lo para a cadeia. Terry está devendo uma fortuna para agiotas e precisa da ajuda financeira do tio para sobreviver, assim como Ian, que tem planos de se mudar para a Califórnia com Angela. Howard, então, pede ajuda para os sobrinhos para "se livrarem" do tal sócio e, em troca, ele os ajudaria financeiramente. O filme, infelizmente, começa a decair a partir deste momento. Colin Farrell, que não é mal ator, começa a ter problemas de consciência não muito convincentes mais por culpa do roteiro do que por sua interpretação. De jovem irresponsável, mas irreverente, ele de repente passa a um alcoólatra que também tem problemas com remédios, além das crises de consciência. Allen escreve diálogos cheios de culpa freudiana que, repito, não soam muito convincentes, assim como as situações vividas pelos personagens. As cenas que levam ao crime em si tem certo suspense e sem dúvida são bem feitas, mas não são suficientes para justificar os problemas que o filme enfrenta. Allen já esteve muito melhor em "Crimes e Pecados" (1989), que também lidava com questões morais a respeito de assassinato mas de forma muito mais profunda e equilibrada. "O Sonho de Cassandra", apesar de seus bons momentos, acaba soando falso e vazio.

domingo, 1 de junho de 2008

Trilogia das Cores

O diretor polonês Krzysztof Kieslowski (que morreu em 1996, aos 55 anos, de ataque cardíaco) era especialista em filmes em série. Católico, realizou "O Decálogo", um conjunto de filmes baseados nos Dez Mandamentos. Com as comemorações dos duzentos anos da Revolução Francesa, em 1989, Kieslowski conseguiu financiamento francês para realizar mais uma série, desta vez baseada nos ideais da revolução e nas cores da bandeira francesa: liberdade, igualdade, fraternidade. Azul, branco e vermelho.


A Liberdade é Azul (Trois Couleurs: Bleu, 1993) conta a história de Julie (a jovem, bela e talentosa Juliette Binoche), uma mulher que perde o marido e a filha em um acidente de carro. O marido era um compositor famoso que estava compondo um concerto em homenagem à unificação da Europa. Julie se fecha atrás de um rosto fechado e incapaz de sentir qualquer emoção. Quando ela volta à sua casa encontra uma empregada chorando. Ela lhe pergunta: "Por que você está chorando?", e a empregada responde: "Porque a senhora não chora". Julie decide tentar mudar de vida e se muda do campo para a cidade grande, decidida a apagar o passado e nunca mais se ligar a mais ninguém. Mesmo assim, há uma cena em que ela pega o telefone e liga para um amigo, perguntando simplesmente: "Você ainda me ama? Então venha". Eles fazem amor mas ela parece não ter sentido nada. Kieslowski, auxiliado por seu ótimo compositor Zbigniew Preisner, usa a música como forma de indicar que as emoções não abandonaram totalmente Julie. Em alguns momentos, por exemplo, a tela fica simplesmente escura e escutamos alguns acordes da orquestra tocando parte da trilha (do suposto concerto perdido). É como se Julie carregasse a música, e todas as suas tristes memórias, presas dentro de si. Há também a desconfiança de que, na verdade, era ela quem compunha as músicas para seu marido. A bela fotografia e a direção de arte tratam de fazer com que todo o filme seja azulado. Binoche está maravilhosamente contida, e consegue transmitir emoção apenas com o olhar. O tema da música é levado por todo o filme. Em frente ao café que frequenta, por exemplo, Julie vê um músico de rua que, com a flauta, curiosamente toca as mesmas notas do concerto que ela escuta repetidamente na cabeça. Kieslowski gosta de colocar esses "acasos" em seus filmes, e há situações similares ou encontros casuais mesmo entre os personagens da trilogia. As emoções (ou a música) acabam vencendo no final, em uma sequência de arrepiar, mostrando os personagens do filme enquanto o concerto é escutado na trilha sem interrupções pela primeira vez. Juliette Binoche é mostrada fazendo amor como que através de um vidro, em um curioso efeito visual, como se ela estivesse finalmente exposta ao mundo e a seus sentimentos.

A Igualdade é Branca ( Trois Couleurs: Blanc, 1994) tem um tom bem mais leve e cômico que o filme anterior. O roteiro trata de um casal em crise. O polonês Karol Karol (Zibgniew Zamachowski) está sendo abandonado pela esposa Dominique (Julie Delpy). Em um tribunal, ela explica ao juiz que o motivo do divórcio é que o casamento não foi consumado. Envergonhado, Karol admite que não conseguiu fazer amor com a esposa desde o casamento, seis meses antes, mas que ele quer tentar salvar o relacionamento. Dominique não só não quer mais continuar casada como, aparentemente, quer acabar com a vida do ex-marido. Ela ateia fogo no salão de beleza deles e diz para a polícia que o culpado foi Karol. Ele tenta voltar para a Polônia mas está sem passaporte e sem dinheiro. Uma das cenas mais engraçadas do filme é o modo pelo qual Karol volta à Polônia: dentro de uma mala de viagem, embarcada por Milokaj (Janusz Gajus) um colega polonês que ele conheceu na estação de metrô de Paris. A idéia da "igualdade", ou melhor, da desigualdade, fica aparente na diferença de tratamento que imigrantes como Karol tem. De volta à Polônia, além de trabalhar como cabeleireiro no salão do irmão, Karol começa a trabalhar como segurança para um empresário e, com muita sorte e esperteza, começa a ganhar dinheiro e, aos poucos, elabora um plano para se vingar da ex-esposa. "A igualdade é branca" é o filme mais leve da trilogia, mas não deixa de ter seu charme.


A Fraternidade é Vermelha (Trois Couleurs: Rouge, 1994) lembra um pouco mais o primeiro filme. Até porque a personagem principal, Valentine, é interpretada por uma Iréne Jacob que me lembrou muito Juliette Binoche, de "Azul". Só que Valentine (que é uma modelo) é bem mais otimista e menos sofrida que Julie, apesar de ter sua cota de problemas, como um irmão viciado em drogas. Uma noite ela acidentalmente atropela uma cadela chamada Rita, que tem o nome e o endereço escritos na coleira. Valentine vai até o endereço e encontra um senhor amargo e indiferente com o destino de sua cadela. Ela leva Rita ao veterinário e cuida dela, mas fica curiosa com o velho, e volta à casa dele. Lá ela descobre que ele é um juiz aposentado (Jean-Louis Trintignant) que perdeu a esperança na Justiça e nos seres humanos. Como passatempo ele fica escutando as conversas telefônicas dos vizinhos através de um aparelho, o que inicialmente choca Valentine. Mas percebemos que, ao mesmo tempo que ela quer ir embora, parte dela é atraída seja pela conversa dos vizinhos ou pela figura triste do velho. Uma curiosa ligação acontece entre os dois. O filme tem uma série de tramas paralelas curiosas e interligadas. Há um vizinho de Valentine, por exemplo, que acabou de se tornar um juiz e que tem uma vida muito parecida, sabemos depois, com a juventuda da velho juiz. Valentine tem um namorado morando na Inglaterra que liga para ela todas as noites para checar se ela está em casa e, ciumento, fica fazendo perguntas sobre o dia dela. O tema da traição (e da Justiça) está presente nos três filmes da trilogia. No primeiro, a personagem de Juliette Binoche descobre que o marido recém falecido tinha uma amante que é advogada no mesmo tribunal em que o divórcio de Karol e Dominique é julgado no segundo filme. No terceiro, tanto o velho juiz quanto o rapaz foram traídos por suas companheiras e perdem a fé na Justiça. Irene Jacob, bela e inocente, ainda acredita nos seres humanos e, aos poucos, vai trazendo o juiz de volta à "vida". Há cenas de pura beleza como a sessão de fotos de Valentine, com o fundo vermelho sangue, ou seu desfile na parte final do filme. Apesar dos problemas com o namorado, Valentine resolve partir para a Inglaterra encontrá-lo, e ao final um acontecimento trágico junta todos os personagens da trilogia no mesmo lugar.

Kieslowski dirige com elegância e tem preferência por certos planos, como belos closes em perfil de suas atrizes, ou detalhes mecânicos como a roda do carro do primeiro filme, a esteira que transporta a mala no segundo, ou a sequência de abertura do terceiro, que acompanha os cabos telefônicos de um aparelho ao outro. Há uma série de dicas visuais ligando um filme ao outro, como as cores de certas roupas ou objetos de cena. Ou então certas piadas como uma senhora que aparece nos três filmes na mesma situação, tentando depositar uma garrafa de vidro em uma lixeira alta demais para ela. Só Irene Jacob, em "Fraternidade", ajuda a senhora a jogar a garrafa. Kieslowski declarou, terminada a trilogia, que estava se aposentando e que jamais faria outro filme. Os DVDs contém uma entrevista dada a Rubens Ewald Filho em que ele diz que cinema é apenas sua profissão, e que ele pode parar quando quiser. Soa um pouco duro escutar isso de alguém tão competente na fabricação de suas imagens. Se ele falava sério ou não, o caso é que o cinema perdeu Kieslowski, morto por um ataque cardíaco, dois anos após filmada sua bela e sensível trilogia.