domingo, 31 de julho de 2011

O Estudante

Chano (Jorge Lavat) é um homem de 70 anos que, aposentado, bem casado e com a "missão cumprida" na vida, resolve realizar um sonho antigo: voltar a estudar. Uma das filhas diz que ele vai fazer papel de bobo; a outra adora a idéia e o incentiva. Alícia (Norma Lazareno), a esposa, a princípio reluta, mas logo aceita a vontade do marido e o acompanha para fazer a inscrição na faculdade. "Desculpe-me, senhor, mas seu filho tem que vir pessoalmente", diz a garota da recepção.

"O Estudante" é um filme mexicano de 2009 dirigido por Roberto Girault. O que poderia facilmente ter se tornado uma daquelas comédias rasas ou um besteirol americano estilo "De Volta às Aulas" (1986) se revela um filme sensível e inteligente. Girault não tem medo de fazer uma obra descaradamente emocional, mas nunca piegas, e a trama cresce justamente no encontro entre o veterano Chano e os jovens de sua sala de aula. Santiago (Pablo Cruz) logo simpatiza com o velho e o ajuda a se enturmar com a sala. Santiago é apaixonado por Cármen (Cristina Obrégon) e os dois começam a namorar; quando ela hesita em transar com ele, Chano mostra ao rapaz que o amor é algo a ser cultivado e não uma simples busca por prazeres. Marcelo (Jorge Luis Moreno) é um músico que gosta de Alejandra (Siouzana Melikian), mas ela está deslumbrada com um professor mais velho e acaba engravidando dele. É Chano, novamente, que guia o coração dos jovens a, nas palavras da esposa dele, a deixarem de olhar para eles mesmos e ver em volta. Tudo isso é apresentado de forma romanceada, sim, mas o roteiro propõe um modo de ver a vida que, se a princípio parece antiquado, tem muito bom senso.

O filme faz uma inversão na expectativa do espectador; era de se esperar que Chano, de 70 anos, se sentisse totalmente perdido dentro do mundo "moderno" dos jovens. Ele tem muito a aprender, sim, mas é interessante assistir a um filme que valorize a experiência e vivência não só de Chano como de sua esposa. A relação entre os dois é daqueles romances que duram décadas e superam as adversidades. Diante de um mundo cada vez mais individualista e confuso, são os jovens que se voltam para o mais velho em busca de orientação. Há também um paralelismo entre Chano e Dom Quixote de La Mancha, o imortal personagem criado por Miguel de Cervantes. O teatro da faculdade vai fazer uma encenação da obra e é através das palavras de Cervantes que Chano passa para seus colegas ensinamentos sobre coragem, dedicação e amor. "O Estudante" está disponível em DVD e é uma boa pedida.


sexta-feira, 29 de julho de 2011

Capitão América: O primeiro vingador

O mais novo exemplar dos filmes da Marvel, "Capitão América: O Primeiro Vingador" é um dos mais divertidos, nostálgicos e bem feitos da série. A direção é de Joe Johnston, veterano que começou no cinema fazendo maquetes e efeitos especiais para George Lucas em uma "pequena" ficção científica chamada "Guerra nas Estrelas" (1977). Sua experiência com efeitos o levou a dirigir filmes como "Querida, Encolhi as Crianças" (1989) e "Jumanji" (1995), mas seu filme de 1991, "Rocketeer", com seu ar nostálgico e citações aos nazistas e à II Guerra Mundial, é o que mais lembra "Capitão América".

Steve Rogers (Chris Evans) é um garoto baixo e magro que quer entrar para o exército americano em 1943, na II Guerra Mundial. Ele tem uma integridade inabalável mas já foi rejeitado por cinco centros de recrutamento devido à baixa estatura e várias doenças. É extraordinário, do ponto de vista dos efeitos especiais, que o Steve Rogers magricelo seja interpretado pelo mesmo Chris Evans que, mais tarde, será o alto e musculoso Capitão América. Ele é escolhido por um cientista do exército, Dr. Erskine (um ótimo Stanley Tucci) para participar de uma experiência arriscada: um soro que transformaria Rogers de um rapaz fraco em um super-homem. O Dr. Erskine é um alemão que já havia aplicado esta experiência em um oficial nazista chamado Johan Schmidt (Hugo Weaving, da série "Matrix" e "O Senhor dos Anéis"), quando o soro ainda não estava plenamente desenvolvido. Schmidt é daqueles vilões nazistas tipicamente malucos e megalomaníacos, lembrando muito os da série Indiana Jones (que, por sua vez, foram baseados em histórias em quadrinhos, então o ciclo está completo). O soro, ao invés de transformar Schidt em um herói, o transformou em um monstro que, como todo bom vilão, quer dominar o mundo.

A II Guerra Mundial é às vezes chamada de a última guerra "justa", por ter colocado frente a frente o "bem" (os aliados) contra um "mal" bastante definido, os nazistas do "Eixo". É uma forma simplista de ver o conflito, mas é possível fazer uma fantasia como a do Capitão América, com sua integridade e bondade, contra a organização Hydra, comandada por Schmidt, sem lidar com os problemas ideológicos das guerras do Vietnã ou do Iraque, por exemplo. A época também foi pintada com tons heróicos pela própria Hollywood, que acostumou as platéias a ver os soldados americanos como os defensores da liberdade e libertadores da Europa (o que é questionável, os britânicos e os russoos sofreram muito mais com o conflito). O roteiro de Christopher Marcus e Stephen McFeely levam isso tudo em consideração e o filme de Johnston tem um ar extremamente nostálgico. Quando Rogers passa pelo experimento do Dr. Erskine e se transforma no Capitão América, ao invés de ir lutar nos campos de batalha ele é convocado a fazer uma série de apresentações de propaganda para vender bônus de guerra. A trilha do veterano Alan Silvestri (da trilhogia "De Volta para o Futuro") lembra os sucessos de jazz e big band da época e a direção de fotografia de Shelly Johnson tenta emular a cor dos filmes da II Guerra e dos quadrinhos.

O filme também faz uma ligação interessante com os outros da série ao apresentar o inventor milionário Howard Stark (Dominic Cooper), pai do personagem Tony Stark, já visto pelas platéias como o Homem de Ferro. Stark é obviamente baseado em Howard Hughes, representado no cinema por Leonardo DiCaprio em "O Aviador", filme de Martin Scorsese. O final de "Capitão América" deixa aberto o caminho para o aguardado filme de "Os Vingadores", quando vão se juntar os personagens vistos nos filmes "Homem de Ferro", "Homem de Ferro II" e "Thor". Como entretenimento, "Capitão América: O Primeiro Vingador" é diversão garantida.


terça-feira, 26 de julho de 2011

IV Festival de Paulínia, matéria de rádio

Esta matéria foi produzida para o Repórter Estudante, da Rádio CBN Campinas, em parceria com a PUC-Campinas. Entrevista com o diretor Vicente Amorim, do filme "Corações Sujos" e com o diretor Caue Nunes, do curta metragem "3x4". Confira.

domingo, 24 de julho de 2011

Que mais posso querer

É ela quem dá o primeiro passo. Anna (Alba Rohrwacher) trabalha em uma corretora de seguros e mora com Alessio (Giuseppe Battiston). Aparentemente eles não são casados, mas estão juntos tempo o suficiente para conversarem sobre ter filhos. A irmã de Anna acabou de ter um bebê e Alessio, vendo Anna com a criança, pergunta se ela não gostaria de ter um também. Ela lhe diz que vai parar de tomar a pílula. Ao invés disso, ela envia um SMS para Domenico, um homem casado que ela conheceu quando este prestou um serviço de buffet na empresa dela. E é desta forma que eles começam um tórrido caso extra-conjugal.

"Que mais posso querer" mostra como um caso pode servir, a princípio, como uma válvula de escape não só para as pressões do cotidiano mas da própria realidade. É curioso como o diretor Silvio Soldini mostra a inversão de papéis da sociedade contemporânea. Não só é Anna quem dá início ao caso mas, quando ela deixa de ligar no dia seguinte, é Domenico quem fica chateado. Ele trabalha com um serviço de buffet, tem uma filha de cinco anos e um bebê pequeno. A relação com a esposa é atrapalhada pelas obrigações do dia-a-dia como pagar contas e cuidar das crianças. Já Anna tem em Alessio um companheiro dedicado mas cego aos desejos da esposa. O pobre coitado acha que basta amar e tratar bem a mulher que está tudo certo. Ele vive de bom humor, gosta de livros e filmes e está sempre consertando alguma coisa na casa. Anna e Domenico, ao procurarem algo fora do lar, estão "errados"? Claro que sim, mas não é exatamente por isso que um caso é atraente?

Soldini mostra, passo a passo, como ter um caso requer planejamento dos envolvidos. É necessário arrumar um tempo livre em comum (Domenico faz aulas de mergulho às quartas à noite e Anna diz que precisa fazer hora extra). É necessário arrumar um lugar. É preciso se encontrar, ir até o motel, apresentar os documentos, pagar para entrar e, finalmente, até tirar as roupas se torna um empecilho, na pressa criada pelo desejo e pela pressão do relógio ("são 55 euros por quatro horas", diz o atendente do motel). O sexo, quando finalmente acontece, é rápido e intenso. E agora? Ato consumado, como lidar com a situação dali em diante? Como não confundir o prazer sexual e a idealização com o novo parceiro com amor? Um caso é como um mundo à parte, uma fantasia infantil criada por duas pessoas que brincam que amar é simples, não envolvendo obrigações, cobranças ou preocupações com dinheiro para honrar no final do mês. Claro que a relação está fadada a terminar no momento em que a realidade abrir brechas neste mundo idealizado.

"Que mais posso querer" não apresenta nada de novo em termos de filmes sobre adultério. Mas trata do assunto com honestidade e realismo. Anna e Domenico não são interpretados por Brad Pitt e Jennifer Aniston, mas por atores comuns. A força do filme está no fato que de são homens e mulheres comuns, mas incapazes de lidar com as pressões da vida adulta. Em cartaz no Topázio Cinemas.


sexta-feira, 22 de julho de 2011

Assalto ao Banco Central

Dentro do gênero "policial" há um tipo que os americanos chamam de "heist movie", aquele que trata especificamente de roubos. Estes filmes, como todo filme de gênero, seguem uma fórmula relativamente previsível. Em mãos hábeis, esta fórmula pode ser torcida para criar filmes no mínimo divertidos, como "Onze homens e um segredo" (de Steven Soderbergh) ou quase obras-primas como "Fogo contra Fogo" (de Michael Mann). "Assalto ao Banco Central", do diretor Marcos Paulo, é um exemplo de filme de gênero apenas mediano.

Todo tipo de clichê de filme americano possível pode ser encontrado nesta produção da Globo Filmes. Há o "cérebro" por trás da operação, um bandido que se veste de forma impecável, tem a fala macia e, para deixar a mensagem mais clara ainda, é frequentemente visto em frente a um tabuleiro de xadrez. Ele é o Barão (Milhem Cortaz, muito bem nos dois "Tropa de Elite", mas sem carisma para ser o vilão "sofisticado" deste filme). Há a mulher fatal, Carla (Hermila Guedes), usando salto alto e saias curtíssimas até dentro de um túnel cheio de barro; ela é mulher do Barão, mas flerta abertamente com "o ladrão boa pinta", Mineiro (Eriberto Leão), o segundo em comando. Há o policial das antigas, prestes a se aposentar, o Delegado Amorim (Lima Duarte), que desconfia da tecnologia e prefere seguir seu "faro". Há a policial feminina, Telma (Giulia Gam) que admira a técnica e tem uma relação paternal com Amorim (lembrando a dupla Rachel Ticotin e Robert Duvall de "Um Dia de Fúria"). Há até um personagem que é uma mistura de dois clichês; Devanildo (Vinícius de Oliveira, o eterno garoto de "Central do Brasil") é, ao mesmo tempo, o personagem gay típico, cheio de chiliques, e o rapaz evangélico, seguidor de Jesus.

O roteiro de Renê Belmonte é baseado no famoso roubo ocorrido no Banco Central da cidade de Fortaleza, em 2005, em que bandidos cavaram um túnel de mais de oitenta metros e levaram 164 milhões de reais. A história real era mais do que propícia para um bom filme de assalto, e o de Marcos Paulo tem bons momentos. Uma montagem equivocada, no entanto, mais atrapalha do que ajuda a trama. O filme, que começa do ponto de vista dos bandidos e da preparação para o roubo, muda de repente (e sem uma boa justificativa) para uma montagem paralela em que vemos o ocorrido após o roubo e a prisão de grande parte dos envolvidos. Se esta era a linha a ser seguida, por que não fazê-lo desde o início? Há um momento em que as linhas se cruzam e fica difícil entender a cronologia de certas sequências.

Tonico Pereira, como o "Doutor" (o engenheiro responsável pela construção do túnel), Gero Camilo como "Tatu" (que cava o túnel) e Antonio Abujamra como Moacir (o contato da segurança que passa as plantas do banco para os bandidos) fazem boas participações especiais, o que contrasta ainda mais com a má atuação de grande parte do elenco. O filme foi apresentado no 4º Festival de Cinema de Paulínia e o final, em aberto, deu margem a discussões sobre uma possível continuação. Será?


segunda-feira, 18 de julho de 2011

Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 2

Há uma cena neste capítulo final da saga Harry Potter em que Lorde Voldemort, por um momento, acredita ter vencido. E é então que Ralph Fiennes, o grande ator que o interpreta (debaixo de uma maquiagem que o desfigura) solta uma risada que faz com que ele pareça quase humano. Crédito para o diretor David Yates, que teve a arriscada honra de fechar a série iniciada há exatos dez anos por Chris Columbus. Havia rumores, na época, de que Steven Spielberg seria o responsável pela transposição do bruxo criado pela escritora J.K. Rowling, mas ele teria desistido (ou sido dispensado) por querer fazer mudanças no livro original. Os sete livros se transformaram em oito filmes que, até certo ponto, conseguiram manter uma boa continuidade, principalmente por lidar com um elenco infantil praticamente criado para os papéis principais: Daniel Radcliffe como Harry Potter, Rupert Grint como Ron Weasley e Emma Watson como Hermione Granger. Ajudou também o fato de que grandes atores britânicos como Richard Harris, Alan Rickman, Maggie Smith, John Hurt, Gary Oldman, Helena Bonhan Carter, Michael Gambon e muitos outros completaram os papéis secundários.

Após uma primeira parte exageradamente longa, "As Relíquias da Morte: Parte 2" flui muito melhor. Potter e seus amigos ainda estão procurando as "horcruzes", partes da alma de Voldemort que estão espalhadas em objetos tão diferentes quanto uma taça ou uma tiara. Diz a lenda que, destruídas estas partes, Voldemort seria morto. Mas os três amigos, agora entrando na vida adulta, não têm tarefa fácil. O exército do "mal" está determinado a destruir Potter e a Escola de Hogwarts. Algumas cenas soam apressadas, como se, depois dos longos silêncios e momentos vazios da primeira parte, o roteirista Steve Kloves estivesse espremendo momentos chave do livro para caber no filme. A volta de Potter à Hogwards, por exemplo, pareceu extremamente fácil e rápida, é de se imaginar que no livro seja melhor explicado. A relação dúbia entre Potter e Draco Malfoy também carece de uma explicação melhor. Por outro lado, há sim momentos cinematográficos bastante bons, como a sequência em que a Professora McGonagall (Maggie Smith), auxiliada por outros bruxos, coloca uma proteção mágica sobre toda a Escola de Hogwards. A sequência em que Harry Potter fica sabendo sobre o passado do Professor Snape (Alan Rickman, um pouco desperdiçado nos últimos filmes), também é bastante interessante.

O melhor, sem dúvida, é Ralph Fiennes como Lorde Voldemort. Ele é verdadeiramente assustador e Fiennes consegue transmitir apenas com olhares e a expressão corporal toda a maldade (e sofrimento) do personagem. Vale repetir a cena citada no início do texto. A "alegria" momentânea de Voldemort, interpretada por Fiennes, dá gosto de ver. A série de falsos clímaxes e duelos entre Harry Potter e Voldemort é um pouco cansativa e confusa, o que chega a diluir a força do confronto final entre os dois personagens. Há um ar de seriedade, melancolia e morbidez talvez grande demais para um filme supostamente infanto-juvenil (mas isso já havia nos livros). Mas é uma produção caprichada e, para um blockbuster de férias, acima da média, merecendo respeito.



quarta-feira, 13 de julho de 2011

Ela sonhou que eu morri (Festival de Cinema de Paulínia)

O cenário é simples. Uma sala de aula, uma lousa verde ao fundo, uma carteira escolar. A câmera fixa focaliza uma série de personagens vestindo algum tipo de uniforme, todos estrangeiros, falando diretamente para o espectador. Eles falam em um inglês colorido por diversos sotaques; um deles fala espanhol. Quem são estas pessoas? De onde vieram? De que forma são especiais?

Exibido ontem no 4º Festival de Cinema de Paulínia, "Ela sonhou que eu morri" é um documentário muito interessante dirigido por Maíra Bühler e Matias Mariani. Aos poucos, a série de depoimentos vai deixando mais clara a situação daquelas pessoas e a proposta do filme. São todos estrangeiros presos no Brasil e os diretores optaram por não revelar seus nomes nem de que país vieram. Cabe ao espectador escutar os relatos destes sete personagens e tirar sua própria conclusão. Há um homem que diz ter azar com a mulheres; ele conta, emocionado, sobre uma paixão adolescente que teve com uma moça da Alemanha Oriental, e como a política e as fronteiras os separaram. Em outro relato, conta como uma simples tosse da esposa revelou um câncer avançado nos pulmões dela, e o médico lhe deu apenas 35 dias de vida. Uma presa húngara mostra fotos da filha e, sorridente e se chamando de "burra", conta como caiu em um golpe; ela foi enviada para o Brasil para, a princípio, buscar uns diamantes, mas foi presa no aeroporto pelo DENARC, que achou três quilos de cocaína escondidos nas costuras da calça dela. Um rapaz, falando uma mistura de português com espanhol, conta suas aventuras amorosas com uma moça que, a princípio, não quer nada com ele. "Hoje ela diz que sou o homem da vida dela, e que vai me esperar", diz o rapaz. Há também um boxeador negro que, orgulhoso, explica sua técnica para deixar o adversário bravo antes de começar uma luta. Fala também da ex-esposa e de como descobriu que ela não só o havia abandonado como já havia tido um filho com outro homem. "Não quero falar mal dela, mas acho que isso teria acontecido mesmo se eu não estivesse preso aqui", diz ele, arrancando risadas da platéia.

O filme é basicamente isso, uma série de histórias de vida curiosas, contadas por pessoas que estão presas e que não tem necessariamente que contar a verdade. Algumas delas parecem romanceadas demais. Outras são contidas. Há uma garota negra, supostamente americana, que é vista se maquiando cuidadosamente diante da câmera, enquanto escutamos seu relato. "Tenho pesadelos toda noite", diz ela. A não ser pela mulher húngara, os presos não chegam a contar em detalhes o porquê deles estarem presos. Todos, em comum, mantém viva a esperança de sair da prisão e voltar para seus países. Outro tema similar à história de todos é até que ponto o destino das pessoas já estaria traçado ou se tudo não passa de obra do acaso, da sorte ou do azar.

A recepção ao filme foi dividida. Parte da platéia não se envolveu com as histórias ou se aborreceu com a técnica simples do documentário; pessoalmente, achei um filme muito bem construído, pela escolha dos personagens e pelo modo como suas histórias foram encadeadas. Fica a constatação de que, no fundo, somos todos iguais e que, quem sabe, em outra situação qualquer um de nós poderia estar no lugar daqueles personagens.


Trabalhar Cansa (Festival de Cinema de Paulínia)

Este é o tipo de filme que se sustenta mais pelos climas criados do que pela trama. A história é aparentemente simples. Otávio (Marat Descartes) é demitido da empresa após dez anos de serviços prestados. Sua esposa, Helena (Helena Albergaria), aluga um imóvel comercial em São Paulo e abre um pequeno supermercado. A família é de classe média, com carro, tevê a cabo, uma filha em escola particular e empregada. A perda do emprego, para Otávio, soa como uma sentença de morte. Os tempos são duros e seus cabelos ralos e grisalhos não conseguem competir com os jovens executivos que encontra nas dinâmicas de grupo. O orgulho o impede de trabalhar junto da esposa no supermercado e ele passa os dias acordando tarde e ficando de pijama. O supermercado parece ter vida própria. Um clima desconfortável se estabelece toda vez que a câmera entra no pequeno comércio. A luz é fria; as cores opacas; estranhas infiltrações aparecem nas paredes e, do nada, um líquido escuro e de odor forte começa a brotar do chão. Helena, no entanto, é uma mulher moderna e, como tal, está disposta a vencer as adversidades e provar que pode ser o "homem" da casa.

"Trabalhar Cansa" é escrito e dirigido pela dupla Juliana Rojas e Marco Dutra. Os dois têm uma bem sucedida carreira como curta-metragistas e este é o primeiro longa da dupla. O filme foi apresentado em Cannes e teve sua primeira exibição brasileira ontem, no 4º Festival de Cinema de Paulínia. Pouco antes da sessão começar, o jovem diretor, perguntado sobre a recepção ao filme, disse que "mesmo quem não gosta diz que é difícil de esquecer". É uma boa descrição.

A idéia de que o trabalho dignifica o homem é relativamente nova na história humana. Trabalhava-se para o próprio sustento, ou a serviço da nobreza, que não via o trabalho como algo dignificante. Nos tempos modernos, um homem sem trabalho significa um homem sem rumo, sem honra, sem responsabilidade. Há também a questão do trabalho escravo. Uma cena muito boa mostra a filha de Otávio e Helena, Vanessa, em uma apresentação da escola sobre a libertação dos escravos. Como nenhum dos alunos da escola particular é negro, há várias crianças loiras com o rosto pintado de preto interpretando para uma classe média branca que não percebe a ironia da situação. A empregada do casal, Paula (Lanoana Lima), é uma moça negra contratada por Helena por menos de um salário mínimo, sem registro, para morar no pequeno quarto de empregada do apartamento. O tratamento que Helena dá a seus funcionários do supermercado não é muito melhor. O nível de estresse aumenta a cada dia e coisas "estranhas" começam a acontecer. Um cão raivoso espera todas as noites na frente do supermercado e late ferozmente quando Helena vai embora. Arranhões são vistos na parede do estoque. Alguma coisa entope o encanamento e há "algo" escondido atrás de uma parede apodrecida. O clima de suspense é criado com maestria pelos diretores, que usam de artifícios simples para criar tensão, como um boneco do Papai Noel ou enfeites carnavalescos.

Bobagem tentar "explicar" o filme racionalmente. A tensão cresce plano a plano, sequência a sequência, até uma cena marcante (uma fogueira que deveria ter sido o final do filme, aliás). O elenco é muito competente e Marat Descartes, em especial, repete a boa atuação de "Os Inquilinos" de Sérgio Bianchi. Há certo paralelismo no clima pesado e na ironia brutal de "Trabalhar Cansa" que lembram o filme de Bianchi. A obsessão de Helena e as coisas estranhas que acontecem no supermercado também lembram "O Cheiro do Ralo", de Heitor Dhalia. Resta saber se o grande público vai querer conferir este filme inteligente e instigante nos cinemas.


terça-feira, 12 de julho de 2011

Ibitipoca: Droba pra lá (Festival de Cinema de Paulínia)

Este belo documentário de nome difícil foi exibido ontem no 4º Festival de Cinema de Paulínia. O título se refere à uma região de Minas Gerais, a Serra de Ibitipoca, em que o tempo parece ter parado. Com bela fotografia de Felipe Scaldini (também diretor do longa), o filme mostra de forma poética depoimentos de vários moradores dos pequenos povoados da região. Há diversas sequencias feitas em "time lapse" (cenas fotografadas com intervalo longo entre os frames, acelerando o tempo) que mostram desde imagens prosaicas, como uma criação de galinhas, até belas paisagens serranas, em que as nuvens se formam e desfilam pelo céu, acompanhadas por uma música estilo "new age" composta por Francisco Franco.


Os depoimentos são diversos. Há senhores e senhoras bastante vividos que, aparentemente, não conhecem outro lugar na Terra. "Só saio daqui para aquele cemitério lá", diz um deles. Há contrastes estranhos, como a imagem de um senhor falando sobre sua rotina diária de levantar cedo e trabalhar a terra, vestindo uma camiseta toda escrita em inglês. Há a velha senhora que diz que a única coisa que a mantém viva é a fé em Deus, pois já enfrentou muitos "barrancos", como a morte do marido. Há um músico que, em um relato que levou a platéia às gargalhadas, contou sobre algumas lendas da região, como a de uma luz muito forte que desce do céu como uma estrela cadente; o lugar onde ela desce mostraria onde encontrar ouro. Conforme o documentário se aproxima do final, os povoados vão se tornando maiores, as pessoas mais articuladas e as marcas do "progresso" mais presentes. É levantado um debate sobre os benefícios e malefícios que o turismo trouxe à região. Por um lado, o dinheiro deles é bem vindo. Por outro, as paisagens e o ecossistema podem estar ameaçados.


Bom documentário que alterna imagens muito belas com depoimentos engraçados, dramáticos, tristes ou poéticos.

Os 3 (Festival de Cinema de Paulínia)

O diretor Nando Olival, em seu discurso antes da exibição de "Os 3" em Paulínia, disse que o filme era como um "jazz", em que cada um colocava uma nota. O resultado, infelizmente, está mais para um samba do crioulo doido.

"Os 3" conta a história de três jovens que, após se conhecerem em uma festa no início da faculdade, resolvem morar juntos. Claro que a situação de um triângulo amoroso está longe de ser a ideal, porque alguém sai perdendo. Camila (Juliana Scalch) até parece atenta a este detalhe e, em uma cena em que os três estão tomando banho na "piscina" do prédio (uma caixa d´água abandonada), ela institui uma regra: eles nunca deveriam se envolver. A premissa, interessante, até promete um filme potencialmente ousado, apesar de previsível. O problema é que o roteiro do próprio diretor (em parceria com Thiago Dottori) atira para todos os lados, e os três jovens vivem em um mundo completamente alheio à realidade. Uma locução em off de Rafael (Victor Mendes), o lado mais "sensível" do triângulo, compromete o filme por soar artificial e, o pior, contradizer as imagens em vários momentos. Por exemplo, uma montagem mostra os amigos se divertindo, recebendo namorados, fazendo festas etc, enquanto a narração de Rafael diz que a "regra" os manteve como amigos pelos quatro anos de faculdade. No plano seguinte, no entanto, os três são mostrados passeando em uma lancha e Casé (Gabriel Godoy) e Rafael estão se perguntando se a "regra" seria para valer mesmo. O narrador não acabou de estabelecer que sim? Por que os personagens ainda estão debatendo o assunto?

Para complicar, o que começa como um filme sobre três amigos na faculdade, de repente, se transforma em outro; um projeto dos três na faculdade atrai a atenção de um investidor. A idéia, originalíssima, é a seguinte: e se câmeras fossem instaladas no apartamento dos três e o público pudesse ver pela internet tudo o que eles fazem, 24 horas por dia? Novamente, em que mundo é passado este filme? Após 11 edições do "Big Brother Brasil" e similares, por que esta é apresentada como uma idéia nova? Na verdade é apenas uma cortina de fumaça do roteiro para dar lugar a cenas supostamente ousadas entre os três no apartamento. Há várias situações que não fazem sentido; uma senhora (contratada por eles mesmos para aumentar a audiência) aparece dizendo que é dona do apartamento e quer que eles deixem o local. A siutação é interessante, como eles vão resolver esta farsa diante do público? A trama, no entando, é simplesmente esquecida. Em outro momento, uma suposta prima de Camila aparece no apartamento dizendo que precisa de um lugar para morar. Novamente, não faz o menor sentido. Se o programa dos três é realmente o sucesso que o filme diz, eles deveriam ser famosos e conhecidos. Como é que esta "prima" não sabe de nada? Mesmo que ela faça parte da farsa, o público não iria questionar? Onde está este público? Qual a consequência do sucesso dos três? Aparentemente, nenhuma. Não há um jornalista ou fã que se interesse o suficiente para ir procurá-los no apartamento e, fora dele, eles não são reconhecidos. O filme quer que o público acredite que este sucesso está sendo gerenciado por dois senhores e seu neto, em uma agência de publicidade.

Assim, "Os 3" não sabe direito a que veio. É tecnicamente bem feito, com bela fotografia do craque Ricardo Della Rosa (que é co-produtor) e montagem afinada de Daniel Rezende. Os três jovens são bonitos (embora maus atores) e o filme não perde a oportunidade de expor seus corpos para as cores publicitárias da palheta de Della Rosa. Mas não há desenvolvimento ou profundidade. Situções são criadas para serem abandonadas em seguida. De qualquer forma, o filme foi muito aplaudido ao final da exibição, tem o apoio dos estúdios Warner e pode se tornar um sucesso.


segunda-feira, 11 de julho de 2011

"Argentino", "Off Making" e "Qual queijo você quer?" (Fest. Cinema de Paulínia)

"Argentino" abriu a exibição de curtas-metragens do 4º Festival de Cinema de Paulínia de hoje. O filme é dirigido por Diego da Costa e foi rodado em Campinas e Paulínia no ano de 2009. O diretor, antes da exibição do curta, explicou que é chamado de "argentino", no Brasil, qualquer estrangeiro que tenha sotaque espanhol, caso do personagem principal do filme, um Uruguaio. A trama é interessante. O "argentino" faz carteiras de identidade falsas e, em narração em off, diz que gosta de inventar nomes novos para seus clientes. A narração também é usada para conhecermos melhor a história deste uruguaio que veio ao Brasil fugindo da ditadura militar e deixou para trás uma mulher chamada Rosa e uma filha. Rosa lhe envia diversas cartas falando como sente falta de notícias dele e sobre a filha; ela também pergunta o porquê dele não ter voltado. Há uma curiosa trama paralela em que uma moça, observada pelo "Argentino em um telefone público, discute diversas vezes com um namorado. É um curta-metragem bem feito, com um clima "retrô" e boas interpretações. Várias perguntas ficam no ar (em que época se passa a história? quem é aquela moça?), mas faz parte do ar de mistério do filme.

Já "Off Making" é um curta-metragem muito bem bolado e tecnicamente original, com direção de Beto Schultz. O filme usa de forma muito inteligente a metalinguagem; enquanto a trama se desenrola (o sequestro relâmpago de um universitário e a tentativa de negociação entre os bandidos com a família do rapaz), o público acompanha a equipe de produção gravando as imagens com diversas câmeras. É estranho no início, mas o roteiro é tão bem bolado que logo o público aceita a presença da equipe na tela e, incrivelmente, não deixa de prestar atenção ao enredo. O que parece ser um drama policial muda rapidamente para uma comédia quando o sequestrador, ao tentar ligar para o pai do rapaz, disca o número errado e é atendido por outro adolescente. Segue-se uma comédia de erros muito engraçada e original. "Off Making" foi muito aplaudido e desponta como favorito ao prêmio de melhor curta-metragem do festival.


OFF MAKING from Zero Grau Filmes on Vimeo.


"Qual queijo você quer?", de Cíntia Domit Bittar, é uma simpática comédia dramática que mostra a reação desproporcional de uma velha senhora (Amélia Bittencourt) ao pedido do marido (Henrique César), que gostaria que ela lhe trouxesse um queijo da venda. O inocente pedido causa uma série de questionamentos; o que aconteceu à vida deles? Qual o sentido da vida? Eles nasceram apenas para procriar, envelhecer e morrer? O que aconteceu com aquela viagem à Itália que ele havia prometido? A casa espaçosa? O futuro? O curta-metragem é todo passado em um apartamento simples, cheio das quinquilharias que um casal acumula ao longo da vida (o que gera mais questionamentos da senhora). A interpretação de César e Bittencourt é competente e a atriz veterana, antes da exibição do filme, agradeceu ao companheiro de cena, que diz conhecer "há 500 anos". Curta-metragem bem feito, com boa direção de arte (Bruna Granucci), fotografia (Denny Sach) e trilha sonora (Mateus Mira).

sábado, 9 de julho de 2011

Vênus Negra

Exibido em Campinas há um mês no Fesvital Varilux de Cinema Francês, "Vênus Negra" volta ao Topázio Cinemas. É, sem dúvida, uma das experiências mais impactantes e difíceis de suportar já colocadas em uma tela de cinema. "Vênus Negra" conta os últimos anos de vida de Sarah Baartman, uma sul-africana que era empregada doméstica e babá na Cidade do Cabo, antes de ser levada por seu patrão para Londres, onde era exibida como uma "curiosidade" (ou aberração). É o ano de 1810 e vários tipos de atrações bizarras são mostradas em um bairro pobre da capital inglesa. Sarah é apresentada como a "Vênus Hotentote", uma "selvagem" que seu patrão, Hendrick Caezar (André Jacobs), diz ter capturado sob o risco da própria vida. A apresentação da Vênus é um longo, humilhante e bizarro espetáculo mostrado com detalhes pelo diretor Abdellatif Kechiche, que parece fazer um teste com os espectadores de cinema de hoje, comparando-os com os frequentadores destes "freak shows" do século 19. É uma encenação, claro, mas qual o limite entre o teatro e a realidade? Sarah é uma mulher de 25 anos, aparentemente adulta, por que ela se submete à humilhante representação de um ser selvagem e subdesenvolvido?

Quando membros de uma "sociedade africana" começam a levantar este tipo de questões, Caezar se junta a outro "artista", Réaux (Olivier Gourmet) e eles partem para Paris, para continuar com as apresentações da Vênus. O filme é longo, com duas horas e quarenta minutos de exibição. Durante este tempo, o espectador é testemunha de várias apresentações de Sarah, que se tornam cada vez mais degradantes, chegando perto da pornografia. Ela pertence à tribo dos Hotentotes, que têm como característica física as nádegas e órgão genital feminino avantajados. Há uma longa sequência, também humilhante, em que Sarah é levada aos cientistas franceses para ser medida, pesada, examinada e analisada como mero espécime de laboratório. Quando ela se recusa e expor a genitália, é simplesmente devolvida ao "dono". Sarah voltará a ser examinada, desta vez mais profundamente, pelos cientistas, na sequência final do filme.

"Vênus Negra" levanta a questão de como a curiosidade humana leva a extremos terríveis. A ciência "naturalista" da época não fica de fora. O resultado de todas as medições dos cientistas serve apenas para "provar" que os africanos são inferiores aos brancos, que seriam descendentes de uma raça superior. A curiosidade dos espectadores dos shows da "Vênus Hotentote" não é muito diferente do público dos "big brothers" e "pegadinhas" dos programas de televisão de hoje. Mas o próprio "Vênus Negra", paradoxalmente, acaba testando os próprios limites. Até que ponto é ético mostrar o sofrimento de uma mulher de forma tão detalhada e por tempo tão longo? Até que ponto a atriz Yahima Torres, que interpreta Sarah, não está sendo exposta da mesma forma? Claro que ela é apenas uma atriz mas, curiosamente, esta é uma justificativa dada pelos personagens ao modo como tratavam Sarah Baartman. Quanto à personagem, ela é vista sendo espancada, estuprada, cavalgada, chicoteada e humilhada de diversas formas. Que tipo de homenagem é esta à Sarah Baartman real? Curiosamente, um pouco de humanidade é mostrado apenas quando os créditos estão subindo e cenas reais do corpo de Baartman sendo devolvido à África do Sul, em 2002, são mostradas. Filme difícil, que requer estômago do espectador.


"Uma Longa Viagem" e "O Palhaço" (Festival de Cinema de Paulínia)

"Uma Longa Viagem" foi apresentado pela própria diretora, Lúcia Murat (do bom "Quase Dois Irmãos") como "um filme muito pessoal". O documentário conta a história de Murat e de seus dois irmãos, Miguel e Heitor, que viveram durante o período da ditadura militar no Brasil. Lúcia foi presa por seu envolvimento com grupos de esquerda, Miguel fazia o "meio de campo" entre os irmãos rebeldes e a família tradicional e Heitor foi enviado para Londres para não ter o mesmo destino de Lúcia. O filme usa o ator Caio Blat para interpretar Heitor quando jovem, em recriações interessantes feitas através de cenários simples e projeções feitas sobre o corpo do ator. A "longa viagem" do título se refere pricipalmente aos oito anos em que Heitor esteve viajando pelo mundo, por lugares como Índia, Nepal, Paquistão, Afeganistão, Bali, Ilhas Fiji, Austrália, entre vários países. O próprio Heitor, que passou anos em clínicas de desintoxicação e psiquiátricas, conversa com Lúcia sobre este período. O documentário acaba mostrando as contradições tanto da época quanto dos próprios personagens. Lúcia se considera revolucionária, mas admite que só conseguiu ser libertada da prisão por fazer parte de uma família da elite e ter dinheiro para pagar bons advogados. Heitor é um "free spirit", um homem "livre", mas suas viagens pelo mundo foram custeadas pela família rica e pelo tráfico de diversos tipos de drogas. Seu uso abusivo de drogas, aliás, acabou resultando em sua internação e na dependência de remédios, e sua figura hoje, os olhos arregalados, a fala desconexa e desencontrada, contrastam com a representada por Caio Blat no "passado". A trilha sonora tem Janis Joplin e diversos hits da década de 1970. O documentário é interessante e bem feito, embora longo demais e, por vezes, pareça realmente um álbum de família.

"O Palhaço", de Selton Mello, era o filme mais esperado da noite (e um dos mais aguardados do Festival). A divulgação foi tão grande e Selton Mello atrai tanta atenção que uma verdadeira multidão tentava entrar no Theatro Municipal de Paulínia. A confusão gerou um atraso considerável na programação e a segurança do teatro acabou autorizando que parte do público se sentasse nas escadas. Houve reclamação também por parte do público e dos jornalistas presentes ao fato de que toda a parte da frente do teatro foi reservada para a enorme equipe do filme. O próprio Selton Mello, quando subiu ao palco, disse que se surpreendeu com as proporções que o Festival de Paulínia tomou e que os organizadores deveriam tomar alguma medida. Mello esteve em Paulínia em 2008, lançando seu primeiro longa-metragem, o pesado "Feliz Natal", e a expectativa quanto a "O Palhaço" era grande.

Senton Mello interpreta Benjamim, um palhaço de circo que acha que perdeu a graça. Seu pai, o palhaço "Puro Sangue", é interpretado pelo ótimo Paulo José. Selton é responsável pelo roteiro do filme (em parceria com Marcelo Vindicatto), pela direção, interpretação, co-produção e também fez parte da edição (com Marília Moraes). "O Palhaço", infelizmente, está longe da força de "Feliz Natal". O filme é muito bem intencionado e é louvável sua tentativa de resgatar uma época ingênua e lúdica, represantada pela trupe de artistas do circo "Esperança". Apesar das boas intenções, faltou ao filme um roteiro mais interessante. O caráter episódico fica evidente na participação especial de atores como Moacyr Franco, ótimo em uma sequência passada em uma delegacia de polícia, ou do ex ator infantil Ferrugem, engraçado como escrevente de um cartório onde Benjamim vai tentar tirar a carteira de identidade. Há uma boa sequência passada na casa do prefeito de uma das cidades por onde passa o circo, e um toque de romance é representado por uma fã que convida Benjamim para visitar a cidade. De resto, o filme se resume a longas cenas entre Selton Mello e Paulo José no picadeiro, fazendo números de pastelão que deveriam passar por engraçados, mas no máximo produzem um sorriso na platéia. Selton Mello é bom ator, mas não há nada de muito original em um palhaço triste. Há cenas que tentam evocar Charlie Chaplin e Buster Keaton, mestres do cinema mudo. Keaton, aliás, tinha como marca o fato de ser engraçado sem nunca esboçar um sorriso. O filme foi muito aplaudido no festival, mas como praticamente metade da platéia do teatro era composta pela equipe do filme, fica difícil entender a reação do público comum à produção de Selton Mello.


O cão e Polaroid Circus (Festival de Cinema de Paulínia)

O primeiro dia da competição oficial do 4º Festival de Cinema de Palínia se iniciou com a apresentação do curta-metragem "O Cão", de Emiliano Cunha e Abel Roland. O filme é o projeto de conclusão de curso da PUC Rio Grande do Sul, e tem as "marcas" desse tipo de projeto, como a necessidade de se passar uma "mensagem" de forma cifrada; um do dirtores, ao subir ao palco em Paulínia antes da exibição do curta, definiu o filme da seguinte maneira: "Uma história comum, que se faz refletir sobre a capacidade, ou incapacidade, de se comunicar e viver em sociedade"., repetindo literalmente a sinopse do guia oficial do Festival. Em bom português, o filme trata de várias situações causadas pelo latir incessante de um cachorro. Em um quarto, um casal adolescente não consegue fazer amor porque o rapaz está incomodado com o latido; o cachorro também está atrapalhando um almoço em família e o ensaio de dois violonistas clássicos. Paralelo a estas situações, um grupo de garotos joga bola na rua. O curta é tecnicamente bem feito, gravado em digital com boa fotografia e irritante som, claro, do cachorro latindo. Filme interessante mas, repetindo, cheio de "mensagens semióticas" aprendidas no curso universitário.

Após a exibição do documentário "Uma Longa Viagem" (leia crítica aqui no Câmera Escura) e da desorganização causada pela insistência do Festival em fazer toda a platéia do Theatro Municipal de Paulínia sair da sala para (tentar) entrar novamente em seguida, foi exibido o segundo curta-metragem da noite, "Polaroid Circus", de Marcos Mello e Jacques Dequeker. Se "O Cão" era resultado de um curso universitário, exibindo certos cacoetes do gênero, "Polaroid Circus" é ainda mais formulaico. Típico filme "portfolio" de produtora que quer entrar no mercado cinematográfico, o "curta" não passa de uma série de imagens de uma bela modelo (Maria Greguersen, vestindo uma sexy roupa de baixo) em uma cama em Paris. ("Sim, nós temos dinheiro", diz o filme ao espectador de Paulínia). A beldade então é vista desfilando pelas ruas da "Cidade Luz" tirando fotos com uma antiga máquina Polaroid, acompanhada pela trilha sonora de um músico cego. Assim, o curta-metragem, repito, mais parece o cartão de visitas ou filme teste de alguma câmera de cinema, em caro cenário pelas ruas de Paris.


sexta-feira, 8 de julho de 2011

Corações Sujos (Abertura Festival de Cinema de Paulínia)

"Corações Sujos", de Vicente Amorim, abriu ontem o 4º Festival de Cinema de Paulínia. Baseado no livro de Fernando Morais, o filme conta um capítulo pouco conhecido da história da colônia japonesa no Brasil. O Japão, durante a Segunda Guerra Mundial, fazia parte dos países alinhados ao "Eixo", liderados pela Alemanha nazista. Considerados inimigos pelo governo brasileiro, os imigrantes japoneses perderam diversos direitos, como o de se reunir, se locomover entre cidades e o de falar e estudar a língua japonesa. Quando o Japão perdeu a guerra, em 1945, o próprio Imperador japonês, considerado uma divindade por seus súditos, fez um pronunciamento inédito na rádio declarando a rendição do país e, além disso, sua condição de mero mortal. Só que parte dos imigrantes japoneses no Brasil não acreditaram nas evidências e, movidos por um patriotismo cego, consideraram inimigos qualquer japonês que dissesse que o Japão havia perdido a guerra. Estes "traidores" eram chamados de "Corações Sujos", e vários foram sumariamente executados.

O livro de Fernando Morais é uma grande reportagem sobre a organização "shindo ren-mei", grupo formado por estes fanáticos que, no final dos anos 1940, foram responsáveis pelo assassinato de vários compatriotas. O filme tomou a decisão de não falar sobre esta organização. "Eu queria contar a história destas pessoas", me disse Vicente Amorim. "Há controvérsias se a Shindo Ren-mei teria cometido estes crimes especificos, e se eu focasse muito na Shindo eu tiraria força da história que eu queria contar, então preferi focar nos personagens". Assim, "Corações Sujos" deixa de lado os aspectos puramente jornalísticos do livro de Morais e conta a história do ponto de vista de uma professora chamada Miyuki (a atriz japonesa Takako Tokiwa) e de uma menina chamada Akemi (a extraordinária Celine Fukumoto, de apenas 11 anos). Miyuki é casada com Takahashi (Tsuyoshi Ihara, de "Cartas de Iwo Jima"), um fotógrafo aparentemente pacato que, na verdade, é leal ao coronel japonês Watanabe (Eiji Okuda). O coronel é o líder de um grupo de japoneses leais ao Imperador que, mesmo morando no Brasil, se recusam a se integrar à vida local. É Watanabe que, após uma intervenção da polícia em uma festa japonesa, lidera um grupo que tenta invadir a delegacia da pequena cidade para matar um policial. Eles são impedidos pelo delegado interpretado por Du Moscovis, mas este é só o início de um banho de sangue causado pelo grupo de Watanabe contra os "corações sujos" da cidade.

A produção foi toda rodada no Pólo Cinematográfico de Paulínia, cidade do interior do estado de São Paulo que criou um ousado plano de fomento ao cinema nacional. A fotografia de Rodrigo Monte é muito boa (apesar de alguns planos distorcidos propositalmente que me pareceram desnecessários), ressaltando a luz do interior de São Paulo e, nas cenas noturnas, realçando a ameaça representada pelo grupo de japoneses. Há alguns planos inspirados, particularmente um em que um japonês é morto sobre um monte de algodão recém colhido, formando um belo contraste entre o sangue vermelho e o branco do algodão, lembrando a bandeira japonesa. O elenco é formado por vários atores genuinamente japoneses e por nikkeys brasileiros. Perguntei a Amorim como fez para dirigir um filme que é praticamente todo falado em japonês. "A gente ensaiou por mais de um mês e, através destes ensaios, foi possível afinar tudo e eu me acostumar com a prosódia". O roteiro de David França Mendes, como disse Amorim, é realmente focado nos personagens e há momentos que beiram o melodrama, mas as interpretações francas do elenco conseguem manter o filme no prumo.