"Febre do Rato" é uma experiência visceral que cheira rio, cidade, poluição, tinta, esperma, esgoto. É como um panfleto deixado por um poeta pobre, magro e faminto na mesa do restaurante e, como quase todo discurso panfletário, ele é exagerado, poético, incongruente e apaixonado. É moderno mas também anacrônico, seja nos discursos declamados ou na fotografia em preto e branco.
O cenário é Recife, cidade centenária e tradicional que, recentemente, foi invadida por empreendimentos imobiliários e financeiros que ergueram grandes torres de aço e vidro às marges do rio que a cruza. A câmera do diretor Cláudio Assis passeia pelo rio, por debaixo das pontes, mostrando os arranha-céus ao longe enquanto que, em primeiro plano, as palafitas criam um contraste enorme. Zizo (Irandhir Santos, inspirado) é um poeta que escreve e publica um jornal artesanal chamado "Febre do Rato", que distribui nas favelas da cidade com seu carro velho e um alto falante, com o qual declama palavras de ordem e poemas. O Poeta, a bem da verdade, fala por quase todo o filme, em um jorro ininterrupto de palavras. Só duas coisas conseguem lhe calar: a repressão, ao final, e a bela Eneida (Nanda Costa), uma jovem por quem o Poeta se apaixona. Ela é uma musa moderna, bem distante das donzelas virginais cantadas nos versos românticos do passado. Embora, para o pobre Zizo, ela decida ser inacessível, recusando-se a ficar com ele; o que, claro, só aumenta sua paixão.
Várias pessoas orbitam em volta do Poeta, como seu amigo Pazinho (Matheus Nachtergaele, muito bem), que tem uma relação conturbada com Vanessa (Tânia Granussi). Ela o traiu com outro homem e os dois estão na situação complicada de ainda se amarem, embora haja muita raiva no ar, principalmente por parte dele. Há uma sequência ótima em que uma discussão do casal se passa em três lugares (e três tempos) diferentes, mas as frases se complementam, como se a briga fosse sempre a mesma, repetidamente. Há ainda o traficante de maconha local (Juliano Cazarré) que, aparentemente, vive com outros dois homens e uma mulher; há uma cena que surpreende (ou choca alguns) em que os quatro estão nus, no chão, em uma situação claramente sexual. Cláudio Assis gosta de quebrar com as convenções recatadas do cinema nacional recente e chocar o espectador, por vezes de forma um tanto gratuita; há três ou quatro cenas de sexo entre Irandhir Santos e uma senhora muito mais velha dentro de uma caixa d´água, por exemplo, que podem ser encaradas como gratuitas, apesar da personalidade bastante edipiana do Poeta, que ainda vive com a mãe e depende dela.
O roteiro de Hilton Lacerda não segue uma trama muito clara, mas é evidente o talento de Assis em dirigir todos estes personagens. A fotografia e os movimentos de câmera de Walter Carvalho são tão elegantes e precisos que, repetimos, há certa incongruência entre a crueza do roteiro e das locações e a extrema beleza das imagens. Carvalho, por diversas vezes, coloca a câmera acima dos personagens e os segue em planos sequência que acompanham a trilha sonora (de Jorge du Peixe) ou os versos de Zizo. Tudo culmina para um desfile de 7 de setembro que é uma cacofonia de pés marchando, pessoas falando e poemas declamados. O final, infelizmente, não tem a força do resto do roteiro. É previsível que a subversão do Poeta será punida pelo "sistema"; por isso mesmo, um final alternativo teria mais impacto. "Febre do Rato" foi apresentado no Festival de Paulínia em 2011 e levou oito prêmios. Não é um filme para o grande público; há muita nudez (masculina e feminina) e vários momentos bizarros pelos quais o cinema de Cláusio Assis ficou conhecido. Mas é um trabalho de fôlego, provocador e, em alguns momentos, curiosamente sublime. Visto no Topázio Cinemas, em Campinas.