domingo, 26 de setembro de 2010

O Refúgio

Mousse (Isabelle Carré) e Louis (Mevil Poupaud) recebem a heroína tarde da noite. Louis prepara a droga cuidadosamente e os dois a usam durante a noite toda. Pela manhã, a mãe de Louis aparece no apartamento e encontra o filho morto no chão. Mousse é levada ao hospital e entra em coma. Quando acorda, descobre que o namorado está morto e que está grávida dele. Assim começa "O Refúgio", de François Ozon, em cartaz em Campinas no Topázio Cinemas.

É um filme pequeno e com poucos atores. E há algo na cinematografia francesa que gosta de contar histórias passadas em uma casa no campo, em contato com a natureza, longe da cidade grande; vários filmes com este cenário foram feitos nos últimos anos. É para uma destas casas no campo (perto do litoral, na verdade) que Mousse se muda durante a gravidez. Ela está longe de ser a mãe ideal. Viciada em heroína, toma vidros de xarope com metadona para impedir um aborto. Está sempre de óculos escuros e, de vez em quando, também bebe. Um dia chega à casa o irmão de Louis, Paul (Louis-Ronan Choisy), um rapaz jovem e bonito cujas intenções são incertas. Ele quer cuidar de Mousse? Gosta dela? Quer estar perto do futuro sobrinho?

"O Refúgio" não tem uma trama muito bem definida, lidando sobre o tema da solidão. Mousse estava com o namorado na noite da morte dele, mas nem presenciou o fato. Isolada agora na cabana, mesmo grávida e acompanhada de Paul, há nela uma solidão profunda. Seja por isso ou por carência, aos poucos ela começa a ter sentimentos por Paul. O problema é que a opção sexual dele é outra. Logo ele está saindo com Serge (Pierre Louis-Calixte), um rapaz que cuidava da casa e trazia mantimentos para Mousse. Em uma cena bizarra, um homem que se diz "atraído por grávidas" leva Mousse para a casa dele (por causa da "bela vista para o mar"). Não fica claro se eles transam ou não, mas a princípio Mousse só quer que alguém a abrace.

É um filme bem feminino. O diretor, François Ozon, já trabalhou com grandes atrizes como Catherine Deneuve e Isabelle Rupert em "Oito Mulheres" (2002) ou Charlote Rampling e Ludivine Sagnier em "À Beira da Piscina" (2003). Em "O Refúgio" ele deixa o filme ser levado por Isabelle Carré que, a propósito, estava realmente grávida durante as filmagens. O filme não é muito ambicioso e o final me pareceu muito calculado. Interessante que a trilha sonora foi composta pelo ator que faz Paul, Louis-Ronan Choisy, que canta a canção tema, acompanhado do piano, em uma cena.



sábado, 25 de setembro de 2010

Wall Street: O Dinheiro Nunca Dorme

Há um pouco de Gordon Gekko, o ambicioso jogador da bolsa de valores interpretado por Michael Douglas, no diretor Oliver Stone. Roteirista de sucesso nos anos 80, Stone se lançou para a fama cinematográfica dirigindo filmes polêmicos que trataram de biografias de presidentes americanos (como Nixon, JFK ou George W. Bush), a Guerra do Vietnã (Platoon, Nascido em Quatro de Julho, Entre o Céu e a Terra), violência e a mídia (Assassinos por Natureza) ou a ganância da bolsa de valores (Wall Street). Exagerado, ambicioso, manipulador, Stone passou por maus bocados nos últimos anos, investindo em grandes fracassos como "Alexandre" ou filmes por encomenda como "As Torres Gêmeas". Polêmico, também se tornou documentarista e se aproximou de figuras como Fidel Castro, em Cuba, e Hugo Chávez, na Venezuela.

Na cena que abre "Wall Street: O Dinheiro Nunca Dorme", continuação de seu filme de 1987, Gordon Gekko está sendo libertado da prisão depois de cumprir pena por diversos crimes financeiros. Ele tem pouco dinheiro, um celular que pesa quase um quilo e, fora das grades, ninguém para buscá-lo. Um pouco do Stone polêmico dos anos 80 também volta com Gekko. Paradoxalmente, o estilo um dia inovador de Stone, aos olhos do espectador do século XXI, parece extremamente "clássico", com belas tomadas de Nova York, capital do mundo, créditos no início do filme, música de David Byrne e Brian Eno e um elenco impressionante. De sólidos novos astros como Shia LaBeouf, a carismática Carey Mulligan e Josh Brolin a veteranos como Eli Wallach (no alto de seus incríveis 95 anos), Frank Langella, Austin Pendleton, Susan Sarandon e, claro, Michael Douglas, é um grupo de dar inveja.

Stone explora os atrativos e fraquezas do sistema capitalista em seu palco principal, o mercado de Wall Street. LaBeouf é Jake Moore, um garoto prodígio que, na casa dos vinte e poucos anos, mora em um apartamento caro em Manhatan e acaba de receber um bônus de US$ 1,4 milhões. Apesar da aparente prosperidade, no entanto, o mercado está para estourar em uma das maiores crises financeiras desde a queda da Bolsa de Nova York em 1929. Stone é meticuloso em mostrar como os "tubarões" do mercado exploram o sistema para derrubar competidores e sair lucrando no processo. É o caso de Bretton James (Josh Brolin), que liquida a empresa pertencente a Louis Zabel (Langella), mentor e segundo pai do personagem de LaBeouf. Desolado, Zabel se suicida no metrô de Nova York assim que perde sua empresa. LaBeouf promete se vingar de Bretton, mas ele o faz da maneira capitalista de ser, sendo contratado pelo próprio Bretton. Já Carey Mulligan (de "Educação" e "Em busca de uma nova chance") é Winnie Gekko, filha de Gordon, uma jornalista que mantém um pequeno site independente de notícias. Ela se recusa a perdoar o pai e não quer nada do seu dinheiro, apesar de estar noiva de Moore (LaBeouf), membro de Wall Street, e morar em um apartamento rico em Nova York.

Douglas e LaBeouf repetem, de certa forma, a dupla veterano/novato representada no Wall Street original, em 1987, por Douglas e Charlie Sheen (que faz uma ponta no novo filme). Escondidos de Winnie, os dois começam a trocar informações do mercado (que interessam Moore) por oportunidades de reconciliar pai e filha (que interessam Gekko). Michael Douglas ganhou um Oscar por sua performance no filme original e, paradoxalmente, acabou se tornando uma espécie de modelo para a geração dos anos 80. "Greed is good" (a ganância é boa), dizia Gordon Gekko. Neste filme suas motivações são mais cinzas e difíceis de decifrar. Teria ele se tornado um "homem bom" que só quer voltar a ver a filha? Teriam seus anos de prisão lhe ensinado alguma coisa? O filme é um pouco indeciso quanto a estas questões. O personagem de LaBeouf, principalmente, precisaria de um desenvolvimento melhor. Ele é claramente esperto e conhecedor do mercado o suficiente para estar na posição em que se encontra. Em outros momentos, no entanto, é ingênuo demais. Há também uma mensagem ecológica colocada na trama que, perigosamente, parece justificar os esquemas e lavagens de dinheiro realizados por Gekko e Moore.

Mesmo com estes problemas, é um filme extemamente interessante de assistir e muito bem realizado. Stone mostra como o governo americano foi em socorro das empresas que estavam para falir com um "auxílio" de 700 bilhões de dólares. Chega a ser engraçado o modo como todos, ao redor da mesa do Federal Reserve, discutem cifras de bilhões de dólares como se não fossem nada.

Fato extra filme, é digno de nota que o ator Michael Douglas, logo no início da campanha de promoção para "Wall Street", tenha sido diagnosticado com um câncer na laringe. Em aparição no programa David Letterman, Douglas revelou a doença e, calmo mas bastante preocupado, disse que é grave e que entraria em tratamento. Saber disso nos faz ver sua interpretação de forma diferente (talvez uma despedida?) e, talvez, tornem Gekko mais humano.


domingo, 19 de setembro de 2010

Um Doce Olhar

Chamado por aqui de “Um doce olhar”, o filme “Mel” (“Bal”, no original) do diretor turco Semih Kaplanoglu foi o vencedor do Urso de Ouro em Berlim no início do ano. É a terceira parte de uma trilogia baseada no personagem Yusuf (o garoto Bora Altas, muito bem), que já contou com os filmes “Ovos” (2007) e “Leite” (2008). “Um doce olhar” é uma obra extremamente contemplativa, lenta e silenciosa. Passado nas florestas da região montanhosa da Turquia, o filme é quase um documentário de uma civilização arcaica, ainda baseada na agricultura e na cultura de abelhas. A câmera de Kaplanoglu fica estática quase o tempo todo em longos planos que apenas observam os personagens. A cena inicial mostra Yakup (Erdal Besikcioglu), pai de Yusuf, procurando por uma árvore apropriada para instalar sua colméia. Ele vem acompanhado de um burrinho que carrega seus mantimentos. Escolhida a árvore, Yakup lança uma corda e começa a escalada. É então que escutamos um estalo, o galho começa a se partir e o pobre homem fica pendurado na árvore entre a vida e a morte.

Acompanhamos então a vida da família de Yakup, composta por sua jovem esposa Zehra (Tulin Ozen) e seu filho Yusuf, nos dias anteriores ao episódio da árvore. Yusuf é um garoto inteligente que tem um problema de fala. Ele é gago e só consegue conversar com o pai quando sussurra as frases. Ou, estranhamente, quando lê as orações do dia no início da manhã. Na escola, no entanto, não consegue ler os textos pedidos pelo professor. Entristecido, vê os colegas ganharem, um a um, um broche vermelho como recompensa pela boa leitura. Yusuf nunca se junta aos colegas durante o recreio, ficando na sala de aula a observar suas brincadeiras pela janela.

A sensação de se estar assistindo a um documentário permeia todo o filme. Observamos costumes da pequena vila de Yusuf e o modo de vida de seu pai e colegas. Há o fabricante das cordas que Yakup usa para escalar as árvores. Há a colheita de folhas feita pela mãe de Yusuf. Há a senhora religiosa que leva o garoto até o alto da montanha, em uma cabana, onde ela e outras senhoras recitam trechos da vida de Alá. O filme não tem trilha sonora no sentido tradicional, os sons e músicas ouvidos são os produzidos pelos personagens ou pela natureza. Os sons naturais, aliás, têm uma força enorme na obra, principalmente os produzidos pela floresta, como rangidos de galhos, vento, pássaros ou animais ao longe. A fotografia de Baris Ozbicer privilegia os tons escuros e o contraste entre o dia e a noite. Há apenas uma seqüência um pouco mais barulhenta quando a mãe de Yusuf vai procurar pelo marido em um festival religioso que acontece no meio das montanhas. É um choque reconhecer a marca de um famoso sorvete vendido no Brasil em meio àquela sociedade quase medieval.

Não é um filme muito fácil de se ver. É necessário certo estado de espírito para uma obra extremamente lenta e silenciosa. Há pequenos detalhes interessantes, como na relação afetiva entre Yusuf e seu pai. O homem, apesar das feições fechadas, demonstra grande carinho pelo filho e o educa de forma espartana, mas correta. Conforme o filme vai se aproximando do final e começa a ficar claro para a mulher e o filho que o pai não vai voltar mais, sua falta na tela é mostrada em uma cena interessante em que Yusuf brinca de acender da apagar a luz da casa, na esperança de que, de repente, o pai possa aparecer. (Visto no Topázio Cinemas).


sábado, 11 de setembro de 2010

A Ressaca

Os anos 80 foram a década dos excessos. Os Estados Unidos estavam para se tornar a única superpotência do mundo, Ronald Reagan estava na Casa Branca, Wall Street ditava moda e o dinheiro era o rei. No cinema, os filmes para adolescentes reinavam absolutos, das comédias bem feitas de John Hughes e produções caprichadas de Steven Spielberg a bobagens de baixo nível como Porky´s e similares. Pena que o filme "A Ressaca", ao tentar prestar homenagem à década de 80, foi se basear justamente nesse lado baixo nível.

A trama é básica (e absurda). Um trio de velhos amigos, Adam (John Cusack, também produtor do filme), Lou (Rob Corddry) e Nick (Craig Robbinson) resolvem voltar à estação de esqui onde passaram a melhor época de suas vidas. O objetivo é tentar reanimar Lou, que foi internado no hospital sob suspeita de tentativa de suicídio (na verdade, ele apenas havia sido burro o suficiente para ficar cantando rock com o motor ligado dentro de uma garagem fechada). Os três eram melhores amigos quando adolescentes nos anos 80, mas o tempo e as obrigações fizeram deles "fracassados". Eles são acompanhados pelo sobrinho nerd de Adam, Jacob (Clark Duke), que está no filme para que a parte jovem da platéia se identifique com ele. Os três "adultos" são os típicos americanos "machos", interessados em bebidas, mulheres e outros "machos". Ao chegarem à estação de esqui, eles descobrem que o lugar está decadente e se tornou uma sombra do que era vinte anos atrás. De qualquer forma, eles resolvem confraternizar na banheira ao ar livre do hotel que, magicamente, os transporta para o passado, precisamente para o ano de 1986, quando a banda Poison estava tocando em um festival de rock na cidade.

O filme é até bem intencionado e tem várias referências e homenagens aos anos 80. O comediante Chevy Chase, por exemplo, grande figura da época, faz uma ponta como o zelador do hotel. Há também referências à MTV, aos primeiros celulares gigantes e até mesmo uma piada com "De Volta para o Futuro" na figura de Crispin Glover, o carregador de malas do hotel, que interpretava o pai de Marty McFly no clássico produzido por Spielberg em 1985. Mas o filme é voltado para o mau gosto do americano médio, com várias piadas baixas e cenas envolvendo vômito, dejetos em geral e mulheres com os seios de fora. O hotel onde eles se hospedam é tão obviamente um cenário que é vergonhoso. A questão dos paradoxos no tempo, explorados em filmes como "De Volta para o Futuro" e "O Exterminador do Futuro" também são citados aqui, mas o roteiro não se preocupa muito em ser consistente. Cada um dos amigos deveria, teoricamente, repetir exatamente o que fizeram em 1986 para que a História não seja alterada. John Cusack se lembra de ter terminado com a namorada naquela noite (e de levar um garfo no olho em troca). Lou levou uma surra de um grupo e Nick, que era o cantor de uma banda medíocre, iria se apresentar. As coisas não acontecem exatamente desta forma e o roteiro perde a chance de ser um pouco melhor explorando uma moça que se interessa por Cusack. Ela claramente está fora de lugar e, por um momento, o espectador imagina se ela também não está viajando no tempo. Mas a preguiça do roteiro não explora a situação. O filme é dirigido por Steve Pink, que foi co-roteirista do ótimo filme "Alta Fidelidade", também com John Cusack. É verdade que Pink não deve ter tido muito trabalho ao lidar com o ótimo livro original de Nick Hornby, pois nada da classe daquele filme está neste.

Por fim, também está de volta aquela coisa bem oitentista de que felicidade equivale a bens materiais. Assim, "A Ressaca" termina mostrando que felicidade é ter um barco gigante, uma esposa peituda e burra e um filho alienado. Filme para ser visto em DVD, no máximo, ou baixado da internet.


quarta-feira, 8 de setembro de 2010

O Profeta

A situação dos imigrantes, na Europa, é delicadas. Na França, o presidente Nicolas Sarkozy tem implementado leis consideradas racistas contra muçulmanos e ciganos, entre outros povos. Este caldeirão cultural está muito bem representado em "O Profeta", de Jacques Audiard, que concorreu ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro este ano com "A Fita Branca", de Michael Haneke, e "O Segredo dos seus Olhos", de Juan José Campanella, entre outros.

"O Profeta" é um filme longo, forte, violento e extraordinário. O jovem franco-árabe Malik El Djebena (Tahar Rahim) chega à prisão com 19 anos, após passar uma vida em reformatórios. Não sabe responder à maioria das perguntas ao guarda que preenche sua ficha, como informações sobre seus pais ou se sua primeira língua é o francês ou o árabe. Seu corpo tem as marcas de anos de maus tratos, com diversas cicatrizes. A prisão está dividida; os muçulmanos têm sua parte do pátio, os corsos outra. O "chefe" não oficial da prisão é o corso César Luciani (Niels Arestrup), mafioso que controla diversos negócios ilegais de dentro das grades. Um dia seu grupo se aproxima do recém-chegado Malik e lhe impõe uma missão: ele deve matar um árabe chamado Reyeb (Hichem Yacoubi), testemunha chave de um caso que envolve a máfia. O filme é extremamente violento e os detalhes do assassinato, envolvendo litros de sangue, são mostrados sem pudor. Após o crime, Malik passa a contar com a proteção significativa de Luciani e seus mafiosos corsos. A Córsega, ilha à oeste da Itália, é governada pela França, mas tem seus costumes próprios e até a própria língua.

Malik se encontra em uma posição ao mesmo tempo perigosa e privilegiada. Ele é meio árabe e meio francês, além de muito esperto, o que faz com que ele consiga transitar entre as diversas castas dentro da prisão, iniciando aos poucos seus negócios. Ele é visto pelos muçulmanos como um corso, enquanto os corsos o vêem como um "árabe sujo". O único que percebe seu potencial é César Luciani (em interpretação magistral de Niels Arestrup), que explora a adaptabilidade de Malik para seu proveito. O roteiro é muito inteligente e mostra o embate dentro e fora da prisão destas várias raças e povos, todos vivendo na França. Conforme o filme passa a situação ambivalente de Malik se torna cada vez maior e não se sabe de que lado ele está. O filme lembra um pouco os bons anos de Scorsese e uma de suas obras primas, "Os Bons Companheiros" (de 1990). Forte e realista, o filme assustou alguns espectadores, que abandonaram a sala. Mas é um filme corajoso e muito bem feito, mostrando um dos piores lados da delicada situação dos imigrantes na Europa.


domingo, 5 de setembro de 2010

Nosso Lar

O livro "Nosso Lar", de Chico Xavier, foi lançado em 1944 e é sua obra mais vendida. Ou, como preferem alguns, "Nosso Lar" é um livro ditado pelo espírito André Luiz a Chico Xavier em 1944 e é sua obra mais famosa. O livro agora ganha uma versão cinematográfica que entra para a história como o filme brasileiro mais caro de todos os tempos. Orçado em 20 milhões de reais, "Nosso Lar" é uma obra difícil de avaliar. Não é papel do crítico julgar seu conteúdo religioso ou se ele se trata de verdade ou ficção.

Mas não é tão simples. Retirado o conteúdo espírita de "Nosso Lar", o que sobra? Pode-se discutir os aspectos técnicos da obra, por exemplo. Os inúmeros efeitos especiais foram feitos por uma empresa canadense, "Intelligent Creatures", e contei nos créditos mais de cinquenta pessoas envolvidas. O filme segue um visual "new age" marcadamente azulado, com uma cidade construída em maquetes e pinturas que lembram uma Brasília superdesenvolvida. Ou, talvez, algum parque temático da Disney, na Flórida. Há diversos "ministérios" do mundo espiritual, como o "Ministério do Auxílio" e até um "Ministério da Comunicação" (haveria futuro para o jornalismo?).

Além da visão utópica, pacífica (e rapidamente entediante) do Nosso Lar, há também um purgatório anterior, chamado "Umbral", onde as almas ainda não preparadas têm que passar um tempo pagando os pecados. É para lá que, ao morrer, é enviado André (Renato Pietro), que durante sua vida terrena era um médico de cara amarrada e poucos amigos. Nós nunca o vemos fazer nada de realmente ruim, mas fica implícito que ele não era uma pessoa boa. A paisagem do "Umbral", também azul (mas escuro), é um lugar cheio de espíritos em agonia, sofrendo diversos tipos de tortura mental e física (embora eles sejam espíritos, certo?). André sofre por um bom tempo neste lugar, até que é resgatado por espíritos elevados que o levam até um hospital high tech e imaculado no Nosso Lar. Ele é apresentado ao lugar por Lísias (Fernando Alves Pinto), que lhe recita uma série de ensinamentos edificantes sobre o valor do trabalho, da paciência e do perdão. Há participações especiais de atores globais como Werner Schüneman (que faz outra figura conhecida do universo de Chico Xavier, Emmanuel), Othon Bastos e Paulo Goulart (um ministro que ensina André que também no mundo espiritual há burocracia e filas de espera). Ainda na parte técnica, "Nosso Lar" contém a trilha sonora de ninguém menos que o americano Philip Glass, um dos pais da moderna música orquestrada e do minimalismo. Glass está em piloto automático, com os acordes e arpegios de sempre, mas sua música dá um toque de classe ao filme.

Como cinema, "Nosso Lar" é uma experiência que tem seu interesse, mas que vai se perdendo aos poucos. O roteiro (do também diretor Wagner de Assis) é por demais "didático", cheio de lições de moral e lugares comuns, o que não é necessariamente ruim como auto-ajuda, mas como filme fica repetitivo e cansativo. Para quem não é "crente", pior são as partes que ficam descrevendo o funcionamento do Nosso Lar, com seus ministérios, sua burocracia, seus planos de reencarnação e assim por diante. Há também uma parte que é extremamente datada, falando sobre o início da II Guerra Mundial (que não havia sequer terminado no lançamento do livro). E com todo respeito à religião e aos admiradores do livro, a própria visão do mundo espiritual descrita no filme me pareceu tacanha. A idéia de uma "cidade espiritual" feita no século XVI (segundo descrição de Lísias) pairando sobre o Rio de Janeiro me pareceu muito pequena para o espírito humano (em tempo, não estou falando sobre o espiritismo).

"Nosso Lar", com toda probabilidade, será um grande sucesso nas bilheterias. É o tipo de filme que desafia críticas, já tendo seu público alvo definido e crescente no Brasil. O espiritismo está em alta no país, alavancado com o centenário de Chico Xavier, e provavelmente veremos mais filmes do gênero em um futuro próximo. (Visto no Topázio Cinemas)


sábado, 4 de setembro de 2010

Coco Chanel & Igor Stravinsky

Paris, 1913. O compositor russo Igor Stravinsky (Mads Mikkelsen) estréia sua mais nova obra, "A Sagração da Primavera". O clima é de tensão antes mesmo da música começar. Os dançarinos estão ensaiando atrás da cortina. Os músicos estão confusos com a partitura. "Esqueça a melodia e siga o ritmo", diz o maestro ao primeiro violinista. "Isso não é Tchaikovsky, Strauss ou mesmo Wagner". Quando a música começa, consternação na platéia. O ritmo forte e as notas dissonantes soam como ruídos para os franceses do início do século XX, que vaiam aquela que viria a ser uma das obras mais conhecidas da música erudita.

No teatro estava Coco Chanel (Anna Mouglalis), a estilista mais famosa da história, feminista pioneira e independente. Ela é das poucas que gostou do que ouviu e fica intrigada com o compositor. Os dois são apresentados somente sete anos depois, em 1920. Stravinsky está exilado na França por causa da Revolução Russa de 1917, e mora em um quarto de hotel com a esposa Katarina (Elena Morozova) e vários filhos. Chanel, mais bem-sudedida do que nunca, está de luto pela morte do amante, o inglês Boy Capel, e oferece a Stravinsky sua casa no campo, onde ele poderia trabalhar em paz e se instalar com a família. O que mais ela estaria oferecendo? Dois artistas geniais e polêmicos, não demora muito para que a convivência na mesma casa acabe em um tórrido romance.

O filme do holandês Jan Kounen foi produzido e lançado praticamente ao mesmo tempo que outro sobre a estilista francesa, "Coco antes de Chanel", produzido com mais recursos e estrelado por Audrey Tautou. "Chanel & Stravinsky" é um filme menos interessado na biografia e mais profundo na relação entre os personagens. A Chanel de Anna Mouglalis é mais "mulher", mais senhora de si e menos atrapalhada que a personagem criada por Tautou. É verdade que as épocas são diferentes. É como se "Chanel & Stravinsky" fosse uma continuação mais séria de "Coco antes de Chanel", tendo a morte de Boy Capel como ponto de ligação.

O ator dinamarquês Mads Mikkelsen faz de Stravinsky um homem emocional, apaixonado por sua música e talvez um pouco inseguro com as mudanças que está criando. É bom pai e tem na esposa não só uma companheira de infância como sua principal crítica. É ela quem transcreve seus rabiscos para a partitura. A estilista Chanel se identifica com o processo criativo de Stravinsky e ela tem o modo seguro de quem sempre consegue o que quer. O processo de aproximação física entre os dois artistas é muito bem conduzido pelo diretor. A câmera está sempre em movimento, circulando os personagens e revelando humores e cenários. Observe a elegância do plano que mostra Stravinsky invadindo o quarto particular de Chanel, vazio, para explorá-lo. A própria cor do filme muda sutilmente, ficando mais quente, contrastando com os tons pretos e brancos característicos da moda de Chanel. Há várias cenas de sexo que sugerem uma paixão mais carnal do que própriamente amor. Enquanto isso, pelo resto da casa, vemos a tensão aumentando entre criados, esposa e filhos. A música do próprio Stravinsky é bem usada nos momentos de suspense.

O final revela, em algumas cenas intercaladas com o presente, o final aparentemente solitário dos dois artistas, cuja obra é influente até hoje. (filme visto como cortesia no Topázio Cinemas, Campinas).