sábado, 12 de março de 2011

Rango

O trailer de "Rango", bastante engraçado, tenta passar uma imagem de mais uma animação leve para crianças, com muita correria e piadas fáceis. Quem for ver o filme vai dar muitas risadas, sim, mas "Rango" é muito mais do que isso; é mais adulto e inteligente do que a maioria dos filmes americanos em cartaz. A direção é de Gore Verbinski, diretor de "Piratas do Caribe", e é a primeira animação produzida pela empresa de efeitos especiais de George Lucas, a ILM (Industrial Light and Magic). O resultado é um filme tecnicamente perfeito, com uma qualidade visual e um nível de detalhes impressionante. Nos créditos pode-se ver o nome do diretor de fotografia Roger Deakins como "consultor visual". Deakins é um dos melhores fotógrafos do cinema, tendo trabalhado constantemente com os irmãos Coen ou com M. Night Shyamalan. Os detalhes, a luz e as texturas vistas em "Rango" só têm paralelo em animações como "Wall-E" ou "Como treinar seu dragão"; não coincidentemente, Roger Deakins foi "consultor" também nestes dois outros filmes.

"Rango" conta a história de um camaleão que cai do carro de seus donos e se vê perdido em pleno deserto de Mojave, no oeste americano. Ele recebe ajuda de um misterioso tatu que só fala por meio de metáforas e que o direciona no caminho da pequena cidade de "Dirt" (poeira), no meio do deserto. "Dirt" é a típica cidade do velho oeste, com o "saloon", o banco, a prefeitura, o ferreiro e a funerária. Todos estão passando por dificuldades pela falta de água, que misteriosamente deixou de correr pela região. Há um sem número de referências cinematográficas no roteiro, mas a influência principal é dos faroestes italianos de Sergio Leone. Há um "coro" de corujas que nos conta a história e acompanham a trilha sonora. A questão da falta de água e suas implicações políticas vêm diretamente do clássico "Chinatown", dirigido por Roman Polanski em 1974. Até o prefeito da cidade, uma tartaruga inteligente e traiçoeira, é claramente baseada no personagem que John Huston interpretou naquele filme.

O camaleão se faz passar por um sujeito durão e adota o nome de "Rango" (tirado do rótulo de uma bebida chamada "Durango"). Toda a cidade fica impressionada com ele quando, por acidente, ele mata a principal ameaça do lugar, uma águia. O prefeito faz dele o novo cherife e ele logo se vê envolvido em uma investigação; quem teria roubado a água do banco? Por que a fazendeira "Feijão" (uma lagarta que vai se apaixonar por Rango) afirma ter visto água ser despejada no deserto? Por que é que o prefeito parece ser o único da região a não sofrer com a falta de água? Todas estas perguntas e intrigas são desenvolvidas no ótimo roteiro escrito por John Logan, que faz uma mistura de velhos filmes de faroeste com a intriga de "Chinatown". A trilha de Hanz Zimmer flerta com os clássicos que Ennio Morricone compôs para Sergio Leone ou com a música de "Sete Homens e um Destino", composta por Elmer Bernstein.

"Rango" já é opção certa para o Oscar de Melhor Animação para 2012. Seu roteiro é inteligente e, tecnicamente, eleva a computação gráfica a um nível de realismo impressionante. Se cuide, Pixar.


sexta-feira, 11 de março de 2011

Bruna Surfistinha

Na cena da primeira vez que Bruna transa com um cliente e inicia sua "carreira" como prostituta, ela está de bruços, na cama, com o homem por cima. Sua expressão é um misto de dor e nojo e, em uma decisão interessante do diretor Marcos Baldini, a garota quebra uma convenção cinematográfica e fita o espectador direto nos olhos. É como se o filme perguntasse ao público presente ao cinema: "Vocês não vieram aqui para ver sexo? Então vejam". Nem que fosse apenas por esta cena, é um alívio ver que o filme está levando o assunto e o público com um mínimo de seriedade. Em um cinema nacional que quebra recordes de público com filmes rasos como "De Pernas pro Ar", podia-se esperar muito menos de "Bruna Surfistinha", a cinebiografia da prostituta mais famosa do país.

Bruna, interpretada com grande entrega por Deborah Secco, é o "nome de guerra" de Raquel Pacheco, garota de classe média paulista que abandonou a família para se tornar garota de programa. E inegável que ela foi um fenômeno de marketing. Primeiro em um blog e depois em um livro que se tornou "best seller" (para os padrões brasileiros), Raquel conseguiu fazer com que "Bruna" se tornasse conhecida e até mesmo admirada. Em um país em que Geisy Arruda se tornou "celebridade" por usar um vestido curto, talvez não seja um feito assim tão louvável, mas sem dúvida é fora do comum. O blog de Bruna Surfistinha recebia milhares de visitas diárias e ela soube explorar a nova mídia para atrair clientes cada vez mais variados. Mas como diz o ditado, é preciso ter cuidado com o que se deseja. Qual a vantagem em ser a "garota de programa mais conhecida do país"? Mais dinheiro? A que preço? Quem desejaria ser a "número um" em uma das "profissões" mais humilhantes que existem?

O roteiro é baseado no livro "O Doce Veneno do Escorpião", que vendeu mais de 250 mil cópias no Brasil. O ritmo do filme é lento, mostrando desde o início de Bruna em uma pequena casa em São Paulo. Lá ela conhece as colegas de trabalho e, com seu jeito de garota tímida, começa a ganhar cada vez mais clientes, o que causa alguns atritos. As cenas de sexo chegam a surpreender pelo realismo e pela entrega de Deborah Secco à personagem. É até de se admirar que a censura seja de 16 anos. Bruna conhece Carol (Guta Ruiz), uma mulher de classe alta que a apresenta para clientes com mais dinheiro; de quebra, Bruna começa a cheirar cocaína e a gastar mais do que ganha. Infelizmente a trama perde o foco a partir do meio do filme. De forma nada sutil, há longas sequências no estilo "montagem musical" em que vemos primeiro a subida de Bruna à classe "alta" da prostituição e das drogas para, em seguida, mergulhar no vício e voltar ao ponto de origem, sem dinheiro ou clientes. Há também um personagem chamado "Huldson" (Cássio Gabus Mendes) que (verdadeiro ou não) é o típico clichê do homem que se apaixona pela prostituta e quer fazê-la "mudar de vida".

E é de se questionar o tom de "vencedora" com que a personagem chega ao final da trama. Tudo na vida são escolhas, mas ao ver "Bruna Surfistinha" é possível se lembrar da garota Suelen, do documentário "Lixo Extraordinário". Com 18 anos e dois filhos para criar, ela preferiu trabalhar dia e noite como catadora de lixo do que se prostituir. Ao final de "Bruna Surfistinha", ela escreve um número na janela de seu apartamento de luxo, que representa os programas que ela ainda pretende fazer antes de "largar essa vida". O número é alto, muito alto; e o preço, impensável.


quarta-feira, 9 de março de 2011

Trabalho Interno

Ao subir ao palco do "Kodak Theater" para receber o Oscar de Melhor Documentário em 27 de fevereiro deste ano, o diretor Charles Ferguson salientou que nenhum executivo mostrado em seu filme havia sido preso por fraude finaceira. "E isso é errado", disse ele. Ferguson detalha, nas cinco partes de seu documentário, como é que a maior crise financeira da história americana se formou, implodiu e foi resgatada pelo governo americano, enquanto milhões de pessoas perderam suas casas e empregos mundo afora.

Não é uma história fácil de acompanhar; mas o roteiro de Ferguson, a narração de Matt Damon e o uso de vários gráficos ajudam o espectador a entender um mundo em que termos como "derivativos" e siglas como "DCOs" são usados normalmente. Basicamente a crise de 2008 foi causada pela exploração do mercado imobiliário. Antigamente, diz o documentário, um banco emprestava dinheiro para alguém esperando receber de volta. A hipoteca era paga ao longo de vários anos e o investimento era razoavelmente seguro para ambas as partes. Com o crescimento das instituições financeiras, as coisas mudaram. Hoje, os bancos vendem um conjunto de hipotecas para uma instituição financeira que, por sua vez, as agrupa em "pacotes" que são revendidos para outras instituições. Estes pacotes são avaliados por firmas especializadas em dar "notas" para pacotes de investimento; os melhores são classificados como "AAA" (triplo A).

Está acompanhando? O problema é que isso causa uma negociação ilusória, que aparentemente não depende mais do pagamento do dinheiro que foi emprestado no início da cadeia. As financeiras juntam estes grandes pacotes de hipotecas (que são, na verdade, dívidas) e usam este "dinheiro" para jogar na bolsa de valores ou nas companhias de seguros. Em vários casos, era mais lucrativo para uma empresa de seguros (como a gigante AIG, por exemplo) torcer contra seus investimentos. Muitos executivos financeiros apostavam milhões de dólares na falência dos mesmos papéis que eles passavam para frente como "rentáveis".

Quando o inevitável aconteceu e as pessoas não puderam pagar suas hipotecas (no início da cadeia), tudo desmoronou. Bancos como "Lehman Brothers" e seguradoras como a "AIG" não tinham dinheiro para honrar seus papéis e entraram em falência, mesmo tendo seus investimentos sido avaliados como "triplo A" poucos dias antes. O governo americano foi chamado para "resgatar" estas empresas e um pacote de 700 bilhões de dólares foi dividido entre as empresas "culpadas" pela crise, como Goldman Sachs, AIG, Merrill Lynch e outras. O mais assustador no documentário, no entanto, é o fato de que a maioria dos executivos destas empresas trabalharam ou trabalham em altos cargos do próprio governo americano, servindo como diretores do tesouro ou presidentes do "Federal Reserve" por décadas. Outro ponto preocupante levantado é que as escolas de economia como Harvard ou Columbia, formadoras dos executivos de amanhã, também são geridas por estas mesmas pessoas, que são contrárias a qualquer tipo de regulamentação e tem como objetivo proteger as instituições financeiras, e não o público.

Nem o presidente Barack Obama, que subiu à Casa Branca prometendo terminar com a "farra" em Wall Street, sai ileso; a resposta de Washington depois da crise foi quase nula e vários dos envolvidos ocupam agora postos chaves do governo. Enquanto milhares de pessoas perderam seus empregos e suas casas, os executivos continuam ganhando milhões de dólares em bônus todos os anos. Um retrato assustador de como funciona o mercado financeiro americano e como suas ações refletem em todo o mundo.


segunda-feira, 7 de março de 2011

A Árvore

Talvez uma das maiores dificuldades do ser humano seja lidar com a perda. Em "A Árvore", um pai de família tem um ataque cardíaco e deixa para trás a esposa Dawn (Charlotte Gainsbourg) e três filhos. Eles moram em uma casa de madeira no interior da Austrália. Ao lado há uma gigantesca árvore que, apesar de bela, representa uma ameaça. Suas raízes não respeitam fronteiras e estão destruíndo aos poucos não só a casa de Dawn como a propriedade dos vizinhos. Tudo indica que a árvore terá de ser sacrificada, mas não é tão simples.

Com a morte do marido, Dawn se entrega àquela letargia de quem não consegue arrumar forças para se levantar de manhã. Seus filhos acabam tomando conta da casa, que está sempre desarrumada. Simone (a ótima Morgana Davies), a filha de oito anos, é quem acorda a mãe e a veste. Simone não está mais triste com a morte do pai. Ela acredita que a "alma" dele encarnou na velha árvore, e passa horas empoleirada em seus galhos, tendo "conversas" com ele. Aos poucos Dawn se recupera e retoma a vida; ela arruma um emprego na cidade e, timidamente, começa a sair com George (Marton Csokas), seu chefe. Há uma cena interessante em que um galho da árvore cai dentro do quarto de Dawn e sua filha Simone acha que o "pai" está bravo com alguma coisa.

O filme tem roteiro e direção da francesa Julie Bertucelli, que trata o tema com delicadeza. As interpretações são muito boas, particularmente das crianças. A direção de fotografia de Nigel Bluck é rica em cores quentes, valorizando os raios de sol que entram pela casa ou passam pelos galhos da árvore. Simone está quase sempre vestindo um vermelho vivo, que contrasta com a sobriedade da mãe. Charlotte Gainsbourg, de quase 40 anos, ainda tem a aparência de uma menina; sua aparente fragilidade dá realismo à situação de Dawn, que sente a perda do marido e por várias vezes não consegue se impor como mãe. Racionalmente, ela não acredita na história da filha, de que o marido estaria "vivendo" na árvore, mas o subterfúgio a ajuda a lidar com a perda. O roteiro é baseado no livro de Judy Pascoe e o final é bastante dramático, quando as forças da natureza, na forma de um ciclone, acabam fazendo o que Dawn não teve coragem. Filme bonito e bem feito. (em cartaz no Topázio Cinemas)