terça-feira, 30 de dezembro de 2014

O Abutre

Lou Bloon (Jake Gyllenhaal) é um trambiqueiro que vive de pequenos furtos em Los Angeles. Uma noite ele vê uma equipe de cinegrafistas gravando um acidente e tem uma inspiração. Com o dinheiro de uma bicicleta roubada ele compra um rádio de polícia, uma câmera de vídeo e passa as noites escutando os chamados de emergência, em busca de alguma ocorrência.

Uma de suas primeiras filmagens, um sangrento homicídio, chama a atenção de Nina (Rene Russo, por onde andava ela?) a editora de uma pequena rede de TV de Los Angeles. Ela é obcecada por audiência, como toda jornalista, mas sua falta de ética encontra eco nas imagens cruas de Lou. "Me traga mais material como este", ela diz ao rapaz.

Jake Gyllenhaal já provou ser bom ator em filmes como "Zodíaco", de David Fincher, e "O Homem Duplicado", de Denis Villeneuve, mas ele está irreconhecível na pele de Lou Bloon, desaparecendo em um personagem completamente sem escrúpulos. Lou não conhece limites éticos; seu objetivo é um só: chegar primeiro à ocorrência e conseguir as imagens mais chocantes. Com uma voz afetada, ele recita sem parar regras de negócios e frases de efeito que aprendeu online e, surpreendentemente, consegue até contratar um estagiário, Rick (Riz Ahmed); com um GPS na mão, Rick orienta Lou pelas ruas de Los Angeles, tentando encontrar o melhor caminho até uma ocorrência. As cenas noturnas que mostram Lou cruzando as ruas em um carro vermelho, aliás, lembram muito o visual do filme "Drive", de Nicolas Winding Refn. (leia mais abaixo)


Em um mundo cada vez mais interessado na imagem, qual o papel do jornalismo? Há uma ótima cena em que Lou, em um jantar, diz a Nina como ele é importante para a emissora; segundo ele, apenas uma pequena parte do jornal é dedicado às notícias de política e do mundo. O resto é preenchido com material sensacionalista sobre crimes e problemas da cidade. Observe como a cena começa como o que parece ser um encontro romântico (e até ingênuo) e termina com Lou chantageando Nina para que ela durma com ele em troca de imagens para seu telejornal.

"O Abutre" é o primeiro longa-metragem dirigido pelo roteirista Dan Gilroy (de "Gigantes de Aço" e "O Legado Bourne"). Ele é irmão de Tony Gilroy, diretor de "Conduta de Risco" e roteirista da trilogia "Bourne". O filme, quase todo noturno, é muito bem fotografado por Robert Elswit, colaborador habitual de Paul Thomas Anderson ("Magnólia", "Sangue Negro"). Há certo exagero (esperemos que sim) na capacidade maquiavélica de Lou em manipular as informações e até em criar situações que rendem boas imagens, mas "O Abutre" funciona muito bem como um alerta para a baixa qualidade do jornalismo atual. O filme ganhou muito elogios entre os críticos e é um dos candidatos sérios para o próximo Oscar.

João Solimeo

The Rover - A Caçada (Netflix)

Ele parece constantemente angustiado. Seco. Fechado. Um morto ambulante. Os olhos fundos e a barba por fazer completam o retrato de Eric (Guy Pearce), um homem vagando pela Austrália em um mundo pós-apocalíptico. "Já vi este filme antes", você pode pensar. "A Estrada" (John Hillcoat, 2009); "O Livro de Eli" (dos irmãos Hughes, 2010); "Mad Max" (George Miller, 1979); estes filmes são, de fato, invocados por "The Rover", mas há um desespero seco e cru neste filme que o faz ainda mais pungente. Nada parece ter sentido ou propósito, vamos todos morrer um dia.

Escrito e dirigido por David Michôd, "The Rover" ainda pode ser lembrado por apresentar uma bela interpretação de Robert Pattinson, bem distante de seu trabalho em sagas adolescentes de vampiros. O filme, porém, pertence a Guy Pearce. Ele é um homem sem nome que, no fantástico começo do filme, tem o carro roubado por três homens armados. Pearce sobe em uma van e sai no encalço deles, determinado a recuperar seu veículo. Por que? Não importa, na verdade. Pouco se sabe sobre o que aconteceu ao resto do mundo, mas claramente a civilização como a conhecemos acabou. Há apenas vastas paisagens desérticas habitadas por farrapos de homens e mulheres.


Pearce acaba cruzando com Rey (Robert Pattinson), um rapaz que foi abandonado para morrer pelo irmão depois de um tiroteio. Pattinson, como disse, está muito bem como um homem que parece uma criança grande. Ele não é muito inteligente e tem uma carência tão grande que acaba formando um laço com o personagem de Guy Pearce, que só quer encontrar seu carro e, provavelmente, matar o irmão de Pattinson. Vemos apenas relances do que sobrou de alguma civilização, como um trem que cruza o deserto, vozes chinesas tocando na rádio do carro e alguns soldados em uma missão inútil.

Destaque para a brilhante direção de fotografia de Natasha Braier. Nesta era digital, "The Rover" foi filmado em bom e velho filme Kodak, com imagem cristalina sob o sol escaldante do sul da Austrália. Repare também no ótimo contraste nas cenas noturnas. A trilha sonora dissonante de Antony Partos também é dos pontos altos do filme. "The Rover", pesado, cruel e marcante, está disponível pela Netflix.

João Solimeo

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Operação Big Hero

Parece que você está assistindo a dois filmes diferentes. "Operação Big Hero" (Big Hero 6) é, ao mesmo tempo, um terno filme sobre a amizade entre um garoto e um robô, por um lado, e um blockbuster de super-herói da Marvel, por outro.

Explica-se. A Disney comprou a Marvel há alguns anos e, precisando de conteúdo, pediu a seus executivos que vasculhassem o vasto arquivo da fábrica de heróis por alguma coisa que pudesse se transformar em um produto Disney. Encontraram "Big Hero 6", uma HQ produzida no final dos anos 1990 que só era conhecida pelos aficionados pelo gênero, o que dava carta branca para que a história original (que era adulta) pudesse ser mudada e adaptada para a sensibilidade dos espectadores dos estúdios Disney.

O resultado é um filme vibrante, vivo e colorido, com fartas doses de influência oriental. A história se passa na cidade de San Fransokyo, uma interessante mistura da cidade costeira americana com a capital do Japão. A famosa ponte Golden Gate, por exemplo, tem formas orientais, os neons estão escritos em japonês e até os personagens têm nomes japoneses, como Hiro Hamada, um garoto prodígio de 13 anos que gosta de competir em lutas clandestinas de robôs.

Um dia seu irmão mais velho, Tadashi, o leva até uma universidade que é o paraíso dos nerds, em que adolescentes de várias idades desenvolvem bicicletas flutuantes e outras coisas do gênero. O projeto de Tadashi é um robô médico chamado Baymax, que se parece com um marshmallow gigante. Tudo no robô inspira calma e tranquilidade e a função dele é tratar da saúde das pessoas. (leia mais abaixo)


Após um prólogo relativamente longo uma tragédia se abate sobre Hiro, que perde o irmão em um incêndio e herda dele o robô de fala tranquila. A relação entre os dois é muito interessante e tem influências claras de histórias como "E.T.", "Meu amigo Totorô", "Gigante de Ferro", "Como treinar seu dragão", entre outras. O filme provavelmente poderia ter sido apenas sobre isto, mas a partir de certo ponto o roteiro parece se lembrar que é também uma aventura da Marvel e o tom do filme muda radicalmente para a ação desenfreada.

O design japonês me lembrou muito Osamu Tezuka, criador de Astro Boy e dezenas de outros personagens de mangás e animês. "Operação Big Hero" tem um pouco de tudo e certamente vai agradar a diversas plateias, de crianças a adultos. Pessoalmente preferiria que o filme tivesse ficado mais no lado dos sentimentos e menos no lado aventura da Marvel, mas é questão de gosto (e de mercado). Também acho que teria sido melhor, do ponto de vista do estúdio, lançá-lo como um produto da Pixar (que já fez o ótimo "Os Incríveis") do que interromper a tradição dos "filmes de princesas" da Disney. É um bom filme, com visual impressionante (San Fransokyo parece viva e pulsante como uma cidade de verdade) e bons personagens. Sem dúvida haverá continuações em breve.

João Solimeo

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

O Homem Mais Procurado (Netflix)

Este é último filme a ter o grande Philip Seymour Hoffman no papel principal. Hoffman, infelizmente, morreu de overdose no início deste ano, deixando para trás uma carreira brilhante em papéis variados. Em "O Homem Mais Procurado" ele é Günther Bachmann, o chefe de um grupo de espionagem baseado em Hamburgo, Alemanha. O mundo vive a paranoia pós 11 de Setembro e as autoridades alemãs não querem que nenhum atentado atinja a cidade portuária.

Baseado em um livro de John Le Carré, o roteiro de Andrew Bovell é complicado na medida certa, com vários personagens e sem a preocupação de explicar tudo didaticamente ao espectador, o que é ótimo. Este é daqueles filmes que requerem atenção. Considerem o personagem de Issa Karpov (Grigoriy Dobrygin), um imigrante ilegal que chega a Hamburgo; filho de chechenos e russos, é muçulmano e atrai a atenção do grupo anti-terrorismo de Günther. Karpov alega que tem uma fortuna a receber da herança do pai militar e recebe a ajuda de uma jovem advogada especializada em refugiados, Annabel (Rachel McAdams). Ela encaminha Karpov a um banqueiro interpretado por Willem Dafoe. Quem é Karpov, afinal? É apenas um refugiado, como alega, ou é um terrorista disfarçado, arrecadando dinheiro para um grande atentado? (leia mais abaixo)


O filme é dirigido com muita competência por Anton Corbijn, que começou a carreira como um celebrado fotógrafo e diretor de videoclips para bandas como Joy Division e U2. No cinema, já dirigiu bons filmes como "Control", que contava a biografia do líder do Joy Division, Ian Curtis e "Um Homem Misterioso", com George Clooney. Corbijn conduz "O Homem Mais Procurado" sem pressa e é metódico em detalhar tanto os procedimentos policiais quanto o estado de espírito dos personagens.

Hoffman se despede do cinema com seu habitual brilhantismo. Günther é um homem muito inteligente, mas tem que lidar tanto com o combate ao terrorismo quanto com as politicagens internas do serviço de inteligência alemão. O elenco, que ainda conta com a ótima Robin Wright (de "House of Cards"), é tão bom que se dá ao luxo de ter um ator como Daniel Brühl ("Rush") como mero coadjuvante. "O Homem Mais Procurado" está disponível na Netflix.

João Solimeo
Câmera Escura

O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos

ATENÇÃO: Spoilers

O terceiro e último capítulo da trilogia "O Hobbit" traz um Peter Jackson cansado e, aparentemente, apressado em terminar o trabalho iniciado em "Uma Jornada Inesperada" (2012). "A Batalha dos Cinco Exércitos" começa exatamente onde "A Desolação de Smaug" (2013) terminou, com o ataque do gigantesco dragão Smaug a Escaroth, povoado humano aos pés da "Montanha Solitária". Smaug é derrotado rapidamente pelo arqueiro Bard (Luke Evans), que consegue atingir o único ponto fraco na armadura da gigantesca criatura, terminando também com a melhor sequência de todo filme. Como ainda estamos no seu início, imagine o tamanho do problema que Jackson e seus roteiristas tinham nas mãos para transformar as  menos de 100 páginas finais da obra de J.R.R. Tolkien em um filme de mais de duas horas e vinte de duração.

"A Batalha dos Cinco Exércitos" é tão frio e burocrático quanto os antecessores foram longos e exagerados. Com Smaug fora de cena, o roteiro fica sem nenhum grande dilema a ser resolvido, a não ser que você se preocupe com o destino de personagens sem muito brilho como Thorin Escudo de Carvalho (Richard Armitage) ou acredite no romance (inexistente no livro) platônico entre o anão Kili (Aidan Turner) e a elfa Tauriel (Evangeline Lilly). Não há um Anel do Poder a ser destruído, como no final da trilogia original de Tolkien, ou personagens realmente interessantes como Aragorn (Vigo Mortensen), Frodo (Elijah Wood) ou Gollun (Andy Serkis). Os únicos personagens ainda dignos de nota são Bilbo (interpretado muito bem por Martin Freeman) e Galdalf (Ian McKellen), mas os dois estão mais para espectadores do que para protagonistas neste capítulo final.

Assim, investe-se em uma exploração psicológica da "doença do ouro" que acometeu Thorin, obcecado em encontrar a "Pedra Arken" e em defender montanhas de ouro do ataque de vários exércitos compostos por humanos, elfos, orcs e outras criaturas, todas marchando em uma grande paisagem em computação gráfica. Armitage, como Thorin, se vê obrigado a fazer expressões faciais de "louco", além de um momento bastante vergonhoso em que ele tem a voz modificada para se parecer com o dragão Smaug, acompanhada de movimentos corporais e tudo. (leia mais abaixo)


Falando em momento vergonhoso (e em desperdiçar um vilão cedo demais), Galadriel (Cate Blanchett), Enrold (Hugo Weaving) e Saruman (Christopher Lee) têm uma cena apressada em que enfrentam Sauron, que é banido por Blanchett em uma exagerada cena de efeitos especiais (com direito a Galadriel transformada em uma espécie de entidade com voz distorcida por computador, reprisando cena da trilogia original). Nenhum dos personagens aparece novamente e fica no ar a pergunta: se Gandalf testemunhou o retorno de Sauron, por que é que ele parece ignorante deste fato no início de "O Senhor dos Anéis"?

O resto do filme, como sugere o título, não passa de uma longa série de cenas de batalha. Ao contrário dos filmes anteriores, ao menos neste a violência tem consequências sérias, resultando até na morte de alguns personagens importantes. O filme (e a Trilogia) terminam, porém, sem muita emoção ou brilho.

Uma questão técnica: Peter Jackson rodou os filmes da trilogia "O Hobbit" em um novo sistema chamado HFR (High Frame Rate) que grava a 48 quadros por segundo (ao contrário dos 24 quadros por segundo tradicionais do cinema). A técnica daria um visual mais "fluido" à imagem, mais "realista", lembrando videogames. A cópia que assisti estava em 3D e, aparentemente, com o framerate de 48 quadros por segundo, o que me causou enorme estranheza. Não parece cinema, parece TV de alta definição. A imagem, mais clara e nítida, se parece mais com o que estamos acostumados a ver em documentários, novelas e vídeos de making ofs do que de filmes de cinema. Foi o primeiro filme desta trilogia que vi com este sistema, mas não estou só em minha estranheza com a imagem, como mostra este artigo de 2012. Se puder escolher, eu recomendaria ver o filme no sistema normal, e não em HFR.

João Solimeo
Câmera Escura

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

25th Hour (A Última Noite) - Netflix

Se a vida como você a conhece fosse acabar amanhã, o que você faria? Monty Brogan (Edward Norton, de "O Grande Hotel Budapeste", sempre excelente) tem uma bela namorada, com o nome exótico de Naturelle Riviera (Rosario Dawson, "Sete Vidas"), tem dois amigos fiéis de longa data, Jake (Philip Seymour Hoffman) e Frank (Barry Pepper) e um pai amoroso (Brian Cox).

O problema é que Monty, um ex-traficante que tinha guardado no apartamento grande quantidade de dinheiro e entorpecentes, é visitado pela polícia uma noite. Eles encontram o material e Monty é condenado a sete anos de prisão. Ele ainda é jovem e, se sobreviver à prisão, ainda tem a vida pela frente, mas todos sabem que nada será como antes. Monty resolve passar sua última noite de liberdade farreando por Nova York com os amigos e com a namorada.

"25th Hour" (chamado no Brasil de "A Última Noite) é um filme feito pelo diretor americano Spike Lee em 2002 e está disponível agora no Brasil pela Netflix. O roteiro é baseado em um livro de David Benioff (um dos produtores de "Game of Thrones") e trata de amor, amizade, arrependimento e desconfiança. O filme foi feito pouco depois dos atentados às Torres Gêmeas de Nova York e Spike Lee usa a tragédia da cidade como pano de fundo para a tragédia pessoal de Monty. Os créditos iniciais se desenrolam sobre cenas dos destroços do World Trade Center, representado por fachos de luz. (leia mais abaixo)


Quem teria delatado Monty para a polícia? A culpa, muito provavelmente, é da namorada dele, mas por que ela teria feito isso? Seria ela uma simples interesseira? Como seus amigos estão lidando com a prisão dele? Barry Pepper, interpretando um corretor de Wall Street, mal consegue esconder a frustração com o amigo. Há uma longa cena, feita em um único plano, em que Pepper e Seymour Hoffman falam sobre a vida criminosa de Monty diante de uma janela que dá para os destroços do World Trade Center. "Eu o amo como amigo, mas ele é um traficante e merece ir para a cadeia", diz Frank. Hoffman interpreta um professor de literatura que é o protótipo do "virgem de 40 anos". Ele é incapaz de olhar diretamente nos olhos de outra pessoa e está fascinado com uma aluna de 16 anos que frequenta suas aulas (interpretada por Anna Paquin, da série "X-Men").

O filme tem belíssima direção de fotografia de Rodrigo Pietro ("O Lobo de Wall Street", "Argo") e ótima edição de Barry Alexander Brown, colaborador habitual de Spike Lee. Há cortes muito interessantes no filme, que repetem a ação dos personagens de um plano para outro ou quebram propositalmente o eixo de ação, desorientando o espectador. A trilha sonora de Terence Blanchard, apesar de muito boa, poderia ser menos presente, sendo exagerada em alguns momentos.

Há uma sensação palpável de tensão que cresce conforme vai chegando a hora de Monty ir para a prisão. Será que ele vai suportar sete anos atrás das grades? A namorada deve esperar por ele? Os amigos voltarão a vê-lo? Seria melhor, talvez, dar um tiro na cabeça e terminar com tudo antes?

Brilhante trabalho de direção e interpretação, "25th Hour" não deve ser perdido.

João Solimeo