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domingo, 6 de maio de 2012

O Porto

"O Porto" é uma pequena obra-prima. Dirigido pelo finlandês Aki Kaurismäki, o filme brinca com clichês, subverte gêneros e é de uma aparente simplicidade que engana. Na cidade francesa de Le Havre, Marcel Marx (André Wilms) é um velho engraxate que, apesar de pobre, leva uma vida regrada. Após passar o dia à procura de clientes (sempre de olho no que os transeuntes estão calçando, a maioria tênis) ele volta para casa à noite, onde sua esposa Arletty (Kati Outinen) o aguarda com o jantar. Os dois têm aquele tipo de casamento que dura décadas, e um observador incauto imaginaria que são infelizes. Uma noite Marcel chega em casa e a esposa está tendo uma crise. No hospital ela implora ao médico que não conte ao marido que não há esperanças. "Ele é como uma criança", diz ela.

Marcel também não é o que parece. A figura ranzinza esconde uma alma boa que se revela com a doença da esposa e com um fato inusitado; uma família de imigrantes ilegais africanos é encontrada dentro de um conteiner no porto (em uma bela cena orquestrada por Kaurismäki), e um garoto chamado Idrissa (Blondin Miguel) consegue escapar da polícia. Ele é encontrado por Marcel, que o coloca sob sua proteção. O filme vê com olhar carinhoso a vizinhança em que Marcel mora, com o vendedor de frutas e verduras, a padeira, a dona de um bar. No início do filme, todos fugiam de Marcel pois ele não tem dinheiro para pagá-los. Com a mulher dele no hospital e o aparecimento do imigrante, todos passam a ajudá-lo com abrigo e comida, ou para despistar a polícia. O lendário ator francês Jean-Pierre Léaud, que trabalhou com Truffaut e Jean-Luc Goddard, faz uma aparição especial como um vizinho que tenta informar a polícia do paradeiro do garoto. Destaque também para a figura do Comissário de Polícia, o policial Monet (Jean-Pierre Darroussin). Enquanto a mídia, em uma ironia do roteiro, faz ligações entre o imigrante africano e a rede terrorista Al-Qaeda e o prefeito pressiona a polícia para encontrar o garoto, o policial Monet mantém os olhos abertos e vigia Marcel de perto, mas tem planos próprios sobre o que fazer com o garoto.

"O Porto" é uma comédia inteligente e comedida. A trama aparentemente simples carrega várias pistas da situação caótica em que se encontra a Europa, com problemas políticos e econômicos. A imigração ilegal tem sido tema de vários filmes ultimamente, mas neste ela é tratada de uma forma ao mesmo tempo direta (todos se unem para tentar enviar o garoto a Londres, seu destino original) e carinhosa. Interessante também a história de amor entre Marcel e a esposa Arletty. Sim, eles são de outra época, em que o marido trabalhava fora e a mulher ficava em casa, mas com que sensibilidade o diretor/roteirista mostra a relação dos dois. A cena final é pura poesia. "O Porto" ganhou o prêmio da crítica no Festival de Cannes, em 2011. Visto no Topázio Cinemas, em Campinas.

domingo, 24 de outubro de 2010

Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague

Festival de Cannes, 1959. François Truffaut, crítico da mítica revista "Cahiers du Cinemá", que havia sido barrado pelo festival no ano anterior por seus textos polêmicos, é aclamado pela platéia. Seu primeiro longa-metragem, e obra prima, "Os Incompreendidos", acaba de ser exibido. Um garoto de 14 anos, Jean-Pierre Léaud, é levantado nos braços da multidão.

Em Paris, outro crítico da revista, Jean-Luc Godard, está inquieto. Ele gostaria de estar no festival. Graças à ajuda de Truffaut e de Claude Chabrol, que lhe servem de fiadores, ele consegue financiamento para seu primeiro filme, "Acossados", um filme "policial" com Jean-Paul Belmondo.

Truffaut e Godard. Godard e Truffaut. Dois cinéfilos de carteirinha, críticos de cinema e criadores do movimento conhecido como a "nova onda", a Nouvelle Vague. Seguidores do maior crítico de cinema da história, André Bazin, Truffaut e Godard vieram de origens diferentes. Truffaut era pobre, humilde. Aos 16 anos, criou um cineclube. Aproveitava quando a família ia ao teatro para fugir e ir ao cinema escondido. Foi preso e um reformatório por roubar dinheiro para pagar as dívidas do cineclube. Godard era de família rica. Morou na Suíça, andava em carros importados americanos. Estava sempre de óculos escuros e atitude esnobe. Os dois se tornaram amigos e colaboradores. Até que a política os separou irremediavelmente e nunca mais se viram.

Esta é a história contada no documentário "Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague", que o Topázio Cinemas está exibindo em sua "Semana do Cinema Francês" (o filme será exibido novamente dia 27 de outubro, às 19h10). Dirigido por Emmanuel Laurent, o documentário mostra a vida, obra e amizade destes dois gigantes do cinema através de imagens de arquivo, entrevistas, centenas de fotos e, claro, cenas de seus filmes. Truffaut sempre foi o mais humano dos dois, o mais esperançoso com relação à vida e as pessoas. Era o cineasta das mulheres e das crianças. Sua maior criação foi o personagem Antoine Doinel, alter-ego que iniciou sua vida cinematográfica em "Os Incompreendidos". Interpretado por Jean-Pierre Léaud, Doinel reapareceu em mais três filmes, mas a imagem final de "Os Incompreendidos", quando o jovem Doinel foge do reformatório, corre até a praia e se volta para a câmera, é inesquecível.

Léaud se tornou uma espécie de irmão mais novo de Truffaut. Em uma cena do documentário, o garoto diz que sua vida mudou totalmente depois do filme, e que agora só queria ir ao cinema para ver "bons filmes".

Já Godard era mais seco do que Truffaut, e gostava de brincar com a linguagem cinematográfica. "Acossados" tinha a trama de um filme policial tradicional, mas Godard o filmou e editou de forma completamente nova. Os cortes da montagem não seguem o tradicional esquema plano/contra plano; a continuidade não é sempre respeitada, assim como o eixo da câmera, quase sempre "quebrado". Godard continuaria fazendo experimentos com a forma do cinema por toda a carreira.

Em 1968, três semanas antes do famoso "maio de 68", os cineastas da Nouvelle Vague, liderados por Truffaut e Godard, marcharam por Paris para protestar contra a demissão de Henri Langlois da Cinemateca Francesa. O local era o "templo" dos cinéfilos parisienses, que queriam manter Langlois na curadoria dos filmes. (Este protesto foi recriado por Bernardo Bertolucci em "Os Sonhadores", de 2003). No ano seguinte, também Truffaut e Godard conseguiram cancelar o Festival de Cannes, como uma forma de protesto por todos os problemas que estavam ocorrendo no mundo.

Depois disso, no entanto, as carreiras dos dois amigos mudou drasticamente. Godard se tornou completamente político, um ativista que queria fazer do cinema uma forma de protesto. Truffaut era um cineasta que amava o cinema em sua forma mais pura. A amizade dos dois foi definitivamente rompida quando Godard enviou uma carta cheia de "veneno" para Truffaut quando do lançamento do ótimo "A Noite Americana", a homenagem que Truffaut fez ao cinema em 1973. Godard chamou Truffaut de "mentiroso". Este retrucou em uma carta de 20 páginas em que acusava Godard de se aproveitar das classes pobres (das quais Godard nunca fez parte) para se promover.

O documentário termina com uma cena ótima, o teste de Jean-Pierre Léaud para o papel de Antoine Doinel em "Os Incompreendidos". A entrevista é muito parecida com uma cena do próprio filme, quando Doinel é entrevistado pelo psiquiatra do reformatório. Truffaut morreu precocemente, aos 52 anos, em 1984, e deixa saudades. Seu amor pelo cinema era enorme, expresso em mais de 25 filmes. Godard continua vivo e ativo, produzindo dezenas de filmes de "arte" com mensagens políticas.