terça-feira, 5 de agosto de 2014

Império do Sol e o Cinema de Steven Spielberg

A Rede Cinemark está exibindo vários filmes clássicos e "Império do Sol", de Steven Spielberg, foi o escolhido neste final de semana (ele também será exibido na quarta-feira, 6 de agosto, às 19:30).

"Império do Sol" é um dos filmes em que Spielberg mais investiu na emoção, ao ponto do excesso. Antes dos Oscars e do prestígio atual com  a crítica, Steven Spielberg era sinônimo de filme "pipoca", de puro entretenimento. Após uma série de mega sucessos como "Tubarão" (1975), "Contatos Imediatos do Terceiro Grau" (1977), "Caçadores da Arca Perdida" (1981), "E.T. - O Extraterrestre" (1982) e "Indiana Jones e o Templo da Perdição" (1984) - e até um fracasso, "1941 - Uma Guerra Muito Louca" (1979) - Spielberg resolveu enfrentar temas mais sérios em "A Cor Púrpura" (1985) e "Império do Sol" (1987). Em termos de Oscar, não funcionou, pois ele continuou sendo ignorado até 1993, quando finalmente ganhou o seu por "A Lista de Schindler". Grande parte da crítica caiu em cima de "Império do Sol", considerando-o longo (como, de fato, é), piegas (sem dúvida) e auto indulgente (idem). O caso é que Spielberg é um cineasta nato e se alguém é culpado por querer gritar CINEMA em cada plano de "Império do Sol", este alguém é Steven Spielberg. Em meio aos excessos, porém, há cenas de extraordinária beleza.

Garotos perdidos

O garoto Jim Graham (Christian Bale, estreando de forma impressionante no cinema aos 13 anos de idade) é o típico "garoto perdido" de Steven Spielberg. Separado da família quando da invasão japonesa a Shanghai, China, no início da 2ª Guerra Mundial, Jim passaria a guerra internado em um campo de prisioneiros japoneses. O tema da busca pela família é caro a Spielberg, que viu os pais se divorciarem quando era jovem e replicou seu trauma em vários filmes; em "E.T. - O Extraterrestre", o garoto Elliot vive em uma família em que o pai se separou da mulher e deixou os filhos com ela. O próprio "E.T." é um "garoto perdido" que foi deixado para trás e passa o filme tentando voltar para o planeta natal. Em "Inteligência Artificial" (2001), o garoto robótico David é abandonado na floresta pela "mãe" humana e também passa o filme tentando reencontrá-la. Situações semelhantes podem ser vistas em "Contatos Imediatos do Terceiro Grau" (1977), "Hook" (1991), "Prenda-me se for capaz" (2002), "O Terminal" (2004) e em vários outros filmes do cineasta. O roteiro de "Império do Sol" (de Tom Stoppard) é baseado na história real do escritor J. G. Ballard, mas são claras as influências pessoais de Spielberg na trama.

A busca pela empatia

Esta busca pelos pais acaba se revelando também em uma grande carência afetiva, que Spielberg expressa em sua necessidade de se comunicar com a platéia. Há uma constante busca pela empatia do público, que Spielberg sabe manipular brilhantemente. Isso pode ser visto tanto quanto um elogio quanto um defeito, mas é inegável o talento do diretor em causar um efeito no espectador. Spielberg agora criar diálogos cinematográficos, seja na conversa musical entre os cientistas terrestres e os alienígenas em "Contatos Imediatos do Terceiro Grau", ou na ligação física que existe entre Elliot e E.T.. Já explorei esta característica dos personagens dos filmes de Spielberg no vídeo abaixo:



Império do Sol em três cenas

Esta carência e a busca pela família (e por ele próprio) podem ser vistas por toda longa e dura jornada do garoto Jim em "Império do Sol", mas é mais explícita em três cenas do filme.

O avião caído

Jim morava com a família em Shanghai na Concessão Internacional, território ocupado principalmente pelos britânicos na China desde o século 19. Spielberg ilustra as diferenças sociais e culturais entre os britânicos e os chineses em uma ótima cena que mostra vários carros de luxo levando os ingleses até uma festa à fantasia. Em meio ao trânsito caótico e ruas apilhadas de gente podemos ver os britânicos (vestidos como marinheiros, palhaços ou piratas) dentro de carros de luxo, alheios ao caos exterior. Jim é fascinado por aviões, principalmente os lendários caças japoneses "Zero", e leva um planador para a festa. Ele se afasta da casa e encontra um caça derrubado em um campo nos arredores. A cena, apesar de se passar no mundo "real", é claramente montada do ponto de vista fantasioso do menino. Ele ainda está com a família e vive em berço de ouro, em uma casa cheia de empregados e luxos. Jim lança o planador no ar, entra no caça derrubado e, acompanhado pela trilha de John Williams,  enfrenta o avião de brinquedo, fingindo atirar com as metralhadoras do caça. É uma guerra de mentira, uma fantasia do garoto transformada em realidade através da competência de Spielberg em lidar com os fundamentos do cinema, criando uma batalha aérea através de movimentos de câmera (fotografia de Allen Daviau), edição cuidadosa (do colaborador habitual, Michael Kahn) e da música de John Williams. A fantasia termina quando, ao ir buscar o planador do outro lado de um monte, Jim dá de cara com um grupo de soldados japoneses de tocaia. A cena é tensa, mas Jim não consegue ver o japoneses como inimigos, tamanha é sua admiração por eles. A batalha de fantasia entre Jim e seu avião de brinquedo representa a inocência do garoto, ainda querido por pai e mãe e com tudo a seu favor.

Logo após o bombardeio a Pearl Harbor (dezembro de 1941), os japoneses saíram da tocaia e avançaram sobre Shanghai, expulsando milhares de estrangeiros que ainda estavam na cidade. Entre eles estavam os pais de Jim, que acabam se separando do filho no meio da multidão. A perda da infância de Jim é representada pelo simples plano de um aviãozinho de metal caindo ao chão; o garoto se abaixa para pegá-lo e se solta da mãe. Em desespero, Jim vagueia por Shanghai em busca dos pais, depois vai até sua casa, que foi abandonada às pressas e saqueada pelos empregados. Em longas e elaboradas cenas, Spielberg mostra como o garoto tenta manter alguma "normalidade" dentro casa vazia, comendo o que restou dos mantimentos sentado civilizadamente à mesa. Quando o "tic-tac" do relógio para, porém, um close no rosto do garoto mostra que uma parte da vida dele morreu para sempre. É hora de crescer.

Ele volta a Shanghai, onde conhece Basie (o grande John Malkovich), um aventureiro americano que fica impressionado com a educação do menino, que usa palavras rebuscadas ("Opulence", repete Malkovich, rindo sozinho). A atenção do americano, porém, não pode ser confundida com amizade. Ele tenta vender o garoto no mercado negro, mas ele está tão fraco que ninguém o quer. Jim e Basie acabam capturados pelos japoneses e enviados a um campo de prisioneiros, onde acontece a segunda cena chave do filme.

Outro avião

A chegada de Jim ao campo de prisioneiros é outra sequência cuidadosamente encenada por Spielberg. O que poderia ser um momento trágico para o garoto acaba sendo visto pela mente do menino como um momento mágico. O campo de prisioneiros fica ao lado de uma pista de onde partem vários caças "Zero", e a visão de um deles atrai Jim como uma mariposa a uma lâmpada. Spielberg aumenta a carga visual e emocional da cena colocando centenas de faíscas saindo do avião, do qual Jim se aproxima com reverência. Ele estende as mãos mas mal consegue tocá-lo. O Sargento Nagata (Masato Ibu) grita com o garoto e chega a destravar a arma, quando sua atenção é desviada pela chegada de três pilotos kamikaze, vestindo seus uniformes. É um momento especial para Jim, que faz continência para os pilotos, que se perfilam e respondem à saudação. Ao fundo, pode-se ver o Sol vermelho no horizonte.



Algumas cenas antes, Jim corria pelas ruas de Shanghai gritando "eu me rendo" aos soldados japoneses que ele encontrava. Não era só um pedido de ajuda, mas de atenção. O menino que tinha tudo, de repente, era invisível em meio ao caos da guerra. A continência trocada entre Jim e os pilotos japoneses é a típica cena "spielberguiana" de ação e reação, mensagem e feedback. De elicitar a empatia do público. Para Jim, significa ser aceito entre os ases da aviação que ele tanto venerava.

Cadilac dos Céus

Jim passa três anos no campo de prisioneiros, procurando se manter ocupado. Ele auxilia o Dr. Rawlins (Nigel Havers) no hospital do campo, ajuda o Sr. Maxton (Leslie Phillips) na fila das refeições e cuida de diversas tarefas para Basie, que se tornou uma espécie de líder informal dos americanos internados no campo. A relação de Basie e do garoto continua ambígua. Jim admira a esperteza do americano, que retribui tratando o garoto não como uma criança, mas (aparentemente) como a um igual. Jim rouba sabonetes do Sargento Nagata, alimentos da horta do hospital e cuida da roupa do americano, que retribui não só com revistas "Life", mas permitindo que o garoto participe da sua zona de influência. Quando Basie quer descobrir se o campo além da cerca é minado, no entanto, ele não hesita em enviar Jim em uma missão potencialmente suicida, sob o pretexto de instalar umas "armadilhas" para apanhar pássaros. Outra figura importante para Jim é a Sra. Victor (Miranda Richardson), que Jim vê como um misto de mãe e figura sexual. Há uma cena rara na carreira de Spielberg em que ele mostra Jim, à noite, espiando a Sra. Victor fazendo amor com o marido.

Com a aproximação do final da guerra, aviões americanos são vistos com frequência cada vez maior sobrevoando o campo de prisioneiros. Uma das sequências mais famosas e ambiciosas do filme começa com o nascer do Sol, símbolo do Império do Japão que Spielberg faz questão de enquadrar em momentos chave da trama. Jim havia sido expulso por Basie do alojamento americano; triste e ressentido, ele assiste a uma cerimônia de graduação de pilotos kamikaze do outro lado da cerca. Ele então começa a cantar uma música dos tempos do coral na escola (Suo Gan, tradicional cantiga de ninar do País de Gales), que John Williams mescla à trilha do filme. Os caças japoneses parecem bailar no céu, em frente ao Sol, quando começa o ataque americano.



Jim sobe em um dos prédios abandonados para ver de perto os Mustang P-51, os elegantes caças americanos que realizam o ataque. Spielberg rodou a sequência em um take, utilizando várias câmeras rodando ao mesmo tempo (segundo o documentário "Uma Odisseia na China", que conta o making of do filme, Christian Bale ficou tão impressionado com os aviões que se esqueceu de interpretar; seus closes foram filmados pelo próprio Spielberg rapidamente, em seguida, para se aproveitar da fumaça e do fogo do cenário).

A liberação do campo é, também, a libertação de Jim. Sua devoção pelos ases japoneses é transferida para os pilotos americanos e seus poderosos P-51, que o garoto chama, aos gritos, de "Cadilac dos céus". E aqui também, claro, Spielberg faz um diálogo cinematográfico. Quando Jim está no alto do prédio ele vê um P-51 vindo em sua direção. O piloto, de dentro do avião, também o vê e acena para ele. Jim grita em puro êxtase cinematográfico.




É, também, o momento em que ele volta à realidade; ao ser confrontado pelo Dr. Rawlins, Jim confessa que não se lembra como eram seus pais. Vale lembrar que Christian Bale, que se tornaria um astro no futuro, tinha apenas 13 anos na época e apresenta uma interpretação impressionante.

The End

O filme, provavelmente, deveria ter terminado por aqui, ou um pouco mais para frente. Mas este é um filme de excessos, lembram-se? "Império do Sol" ainda estica por um longo tempo, mostrando o êxodo dos prisioneiros pela China, a descoberta de um estádio cheio dos artigos de luxo saqueados das casas dos britânicos, a morte da Sra. Victor, a explosão da bomba de Nagazaki, a volta de Jim para o campo e assim por diante. Spielberg estava inspirado. Quando finalmente Jim encontra com os pais e a mãe lhe dá um abraço, um close nos olhos do garoto não mostram uma criança, mas um homem velho, que passou pelo inferno para conseguir sobreviver e, finalmente, voltar ao lar.

"Império do Sol" pode não ser tão redondo como "E.T.", divertido como os filmes de Indiana Jones ou relevante quanto "A Lista de Schindler" mas, em meio a todos os seus excessos, é um dos trabalhos mais impressionante da carreira de Steven Spielberg. A perda da inocência tanto de Jim quanto de Steven Spielberg (que passaria a fazer filmes considerados mais "sérios" dali para a frente) é lenta e dolorosa, mas cinematograficamente espetacular.

Câmera Escura

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